‘A asa veio cair mesmo na minha sala’

A 17 de abril de 2017 uma avioneta embateu na casa de Maria de Fátima Rosa. Mais de dois anos e meio após a tragédia, a proprietária continua traumatizada pelo que viu e ainda espera a indemnização. ‘Isto são os piores anos da minha vida’, lamenta.

‘A asa veio cair mesmo na minha sala’

No espaço de menos de três anos, Maria de Fátima Rosa perdeu a casa, perdeu o emprego, perdeu o sono, perdeu as fotografias do casamento e dos filhos. «Não ficou nada para contar a história». Vive num apartamento emprestado pela Câmara Municipal de Cascais, no Bairro 25 de Abril (Abóboda), rodeada de objetos que lhe foram oferecidos por vizinhos e amigos. «Tudo o que vê aqui em casa, do copo ao lençol, foram as pessoas que nos conheciam que nos deram. Vinham-me trazer as coisas, porque sabiam que eu arranjava, cuidava, de velho eu fazia novo».

Sem emprego – «fiquei sem cabeça para trabalhar» –, dedica-se sobretudo a tomar conta dos quatro netos, mas grande parte do tempo é ocupado em diligências legais e encontros com o advogado. Tem consultas regulares no psicólogo e no psiquiatra mas nem assim recupera a tranquilidade de espírito. «As noites não têm sido fáceis. Com calmantes, sem calmantes… começo a dormir aí a partir das seis da manhã. O resto da noite é só ir buscar porcaria».

Aos 59 anos, Maria de Fátima garante que perdeu até a alegria. «Isto são os piores anos da minha vida». A autocaravana, que levou a família em tantos passeios pelo país, está parada. «Nunca mais demos essas voltinhas. Antigamente eu deixava tudo preparado à quinta-feira para na sexta, mal saía do trabalho, partirmos na autocaravana. Os meus filhos perguntavam: ‘Vão para onde?’. E eu dizia: ‘Não sei’. Saíamos sem destino fixo e parávamos onde nos apetecia. Eu fazia rapel, fazia tudo. Agora até da minha própria sombra eu tenho medo». 

Em abril de 2017, Fátima Rosa e a família aproveitaram a Sexta-Feira Santa para fazer um fim de semana comprido na autocaravana. Na segunda-feira, dia 17, estavam de regresso a Tires. «Tínhamos vindo de Vila Nova de Mil Fontes», recorda. «Trazia ainda uns franguinhos daqueles pequeninos de churrasco temperados e ia à oficina do meu filho assar os frangos para a gente lá comer».

Porém, antes da hora do almoço aconteceu algo que lhe alterou os planos. «Mais valia que eu tivesse fugido e não tivesse visto. Assim nunca mais acaba. Você está no maior silêncio e aquilo vem logo».

‘É banal eles fazerem estas acrobacias’

No final da manhã de 17 de abril, o dia a seguir ao domingo de Páscoa, levantou da pista do aeródromo de Tires um pequeno avião bimotor. Aos comandos do Piper PA-31T estava o francês Jean Plé, diretor da empresa de próteses Symbios Orthopaedics, especializada em implantes no joelho. A bordo seguiam ainda o cirurgião desportivo Jean-Pierre Franceschi, a mulher deste e uma amiga.

O voo tinha destino a Marselha, onde se encontra o centro de referência de cirurgia ao joelho da Symbios, dirigido por Franceschi. Mas logo na descolagem uma falha no motor esquerdo levou a que a aeronave começasse a perder altitude. A falta de experiência do piloto pode ter determinado uma falha que se revelaria fatal. O avião perdeu o controlo.
Maria de Fátima Rosa encontrava-se, naquela altura, no terraço a regar as flores e a tomar conta do neto Martim, de ano e meio. Nascida e criada em Tires, ela própria ajudou a construir a casa quando tinha 16 anos.Mais tarde, conta, «quando fiz aquele terraço disse aos meus filhos: ‘A gente um dia vai ficar aqui todos’. Mas pensei: ‘Deixa lá’. Tem casas tão grandes, altas, à minha frente…».

Devido à proximidade do aeródromo, estava habituada a ouvir os aviões e a vê-los a fazer piruetas e outras manobras menos habituais. «É banal para a gente eles fazerem estas acrobacias». Mas chegou um momento em que se apercebeu de que algo não batia certo. «Achei que aquilo já era demais. Quando vi a levantar a asa, vir para a frente e planar… Não. Isso já não é nada banal. O que é que eu faço?». A primeira coisa que lhe ocorreu foi que tinha de pôr o neto em segurança. «Estávamos naquele bocadinho onde a gente brincava com o menino, e ele andava a correr à volta da mesa. E eu digo: ‘Martim, anda à avó’ – mas sempre com o olho no avião. Eu vou, empurro a mesa – nem sei como é que não o magoei – e ele fica ali quietinho. ‘Vou-te apanhar agora’. Assim que o apanhei, já estava com ele ao colo, fiquei a ver. Quando deixei de ouvir o outro motor a trabalhar é que digo: ‘Não, vais mesmo cair’. Ele vem devagarinho, encaixa-se ali, bate com uma asa no meu gradeamento da varanda, e com a outra asa nas ventoinhas do Lidl. Não partiu um tijolo, nada. Ele encaixou-se e sabia que ia morrer ali». Como tem tanta certeza? «O piloto viu-me a mim e eu vi-o a ele», assevera. «Aliás, descrevi o senhor todo e quando me mostraram a fotografia reconheci-o logo».

Depois de ter percorrido apenas 700 metros desde o final da pista do aeródromo, o Piper roçou com a asa no parque de descargas do Lidl de Tires. O ruído foi tão intenso que no interior do supermercado houve quem pensasse que estava a haver um terramoto.

‘Caiu um avião na minha casa!’

Segundo o relatório preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), «com o impacto, a aeronave explodiu e incendiou-se, infligindo um fogo parcial num camião que se encontrava no local». 

Em casa, com o neto ao colo, Fátima Rosa assistiu a tudo. O avião não terá pegado fogo de imediato. «Não era fogo, era calor. O calor era tão grande… Qual não é o meu espanto quando vejo que a asa está mesmo na minha sala. ‘Vieste mesmo cair aqui’. Foi quando eu fugi. Tive de atravessar ainda dois quartos, a minha cozinha, a sala, a sala de entrada e descer as escadas. Quando estava no fim das escadas oiço uma explosão. A minha mãe, que estava num quartinho de costura, não se apercebeu. ‘Filha, o que é que aconteceu?’. ‘Mãe, vamos embora. Caiu um avião na minha casa, isto vai explodir!’». Sempre com o neto ao colo, arrastou a mãe dali para fora e pediu ajuda «para os desgraçadinhos que ali estavam [dentro do avião]».

Na altura ouviu gritos – só mais tarde percebeu que diziam ‘help’, ajuda. «Até disse ao meu filho que eram senhoras que iam lá dentro. Depois acabou por saber-se que eram dois casais. E muito gritaram. Foi uma coisa horrível. Mas assim que acabei de pedir socorro ouvi a primeira explosão e disse ‘já não há nada a fazer’», recorda.

Além dos quatro passageiros do Piper, a queda do avião provocou uma quinta vítima mortal em terra: um motorista que se encontrava a fazer a descarga de um camião. Estava no seu último dia de trabalho – ia mudar de emprego – e até tinha pensado fazer uma volta diferente, começando pela Rebelva e só depois ir a Tires. Com ele encontrava-se um ajudante que já não conseguiu socorrê-lo.

‘Desde o garfo ao prato, derreteu tudo’

Maria de Fátima foi levada para uma ambulância. «Eles enfiaram-me dentro da ambulância, fui ao hospital mas depressa voltei». 

Entretanto, apesar do grande aparato, a casa da família ia ardendo, com todos os pertences no interior. «Porque é que a minha casa está assim e não leva água?», questionou a proprietária. Ouviu a resposta da boca do primeiro-ministro, que tinha acorrido ao local: «‘Não pode ser, filha. O avião traz o combustível nas asas. Vinha cheio. Se nós mandamos água, isto rebenta tudo’».

Mas a família não se conformava. «O meu filho tentou fugir três vezes, ele sabia onde a gente tinha o ouro, e o dinheiro. Depois ainda lhe deram um fato para tentar lá ir, mas não conseguiu salvar nada. Era só fumo preto. Das janelas de vidro duplas só se vê lá um bocadinho de vidro derretido. Derreteu tudo, desde o garfo ao prato, ao colchão, à cama, tudo o que possa imaginar. Queimou tudo, desde a ponta da casa de banho à ponta da sala». Fátima Rosa viu todos os seus bens saírem de casa «dentro de sacos para ir para o lixo». O neto Martim também não ficou incólume. «Ele esteve sempre comigo ao colo. Lembra-se de tudo. Um menino que já tinha deixado as fraldas, já falava tão bem, e voltou tudo ao mesmo. Tanto que a gente chega ali perto e ele pergunta: ‘Avó, vais à casa partida? Pumba! Avião’».

‘Parece que vão buscar rebuçados’

«Nunca vi tanta coisa preta no ar, houve bocados da avioneta que caíram para o quintal da minha vizinha e outros estavam a provocar infiltrações no telhado do meu irmão», descreve Fátima Rosa.

Cerca de dois anos depois do acidente, o Lidl abriu novas instalações, mais modernas, a poucos metros do supermercado atingido. Mas Fátima Rosa continua com a sua casa queimada. Soube da única proposta da seguradora responsável, que lhe ofereceu uma indemnização de cerca de 160 mil euros, através da televisão (e, mais tarde, pelo advogado). «160 mil euros pela casa, com tudo o que tinha lá dentro? E o que a gente passou? Nada paga isso. Nem que fosse o dobro». O caso encontra-se agora em tribunal, à espera de solução.

A mãe de Fátima Rosa continua na casa onde sempre viveu, contígua à da filha. «Vê-se a água a pingar. Tem alguidares por tudo quanto é sítio». A Câmara propôs-lhe mudar-se para um lar, mas recusou.

Maria de Fátima foi para casa de um filho. Mas não por muito tempo. «Ele teve de vender o andar porque a gente ficou sem nada. Como ele é carpinteiro, pôs a casa como as pessoas gostavam, os móveis tudo moderno. Vendeu-se num instante. Temo-nos governado com esse dinheiro». E instalaram-se todos no apartamento de rés-do-chão no Bairro 25 de Abril cedido pela Câmara. «Eu nem sabia que este bairro existia. Hoje vejo o mundo aqui tão perto de mim. A ponto de ir à janela, abrir a persiana e ter um polícia com a metralhadora. ‘Feche, feche’. Era a cercarem o bairro porque isto é só vê-los passar – discretamente. Está a ver aquele corrupio… parece que vão buscar rebuçados. Não posso abrir uma janela», lamenta-se.

Quer reconstruir a casa de Tires, mas não pensa mudar-se para lá. «Só se me derem muito pouco, que eu não tenha outra hipótese». Mesmo longe do local tem dificuldade em esconjurar as imagens do acidente. «Parece que ficou aqui uma coisa… Oiço barulhos e vem logo à memória. Estou no maior silêncio e aquilo vem logo. Acho que isto nunca mais vai acabar», vaticina. No seu íntimo, é como se o avião caísse dia após dia.