Mário – uma história para lembrar…

Olhemos para os ‘Mários’ das nossas condenações e não vejamos neles, nem em quem tem opiniões diferentes das nossas, uns inimigos a abater.

Mário é a personagem de uma peça teatral com o mesmo nome, inspirada na vida do bailarino Valentim de Barros, que esteve recentemente em exibição e à qual tive o enorme prazer de assistir. Escrita e encenada por Fernando Heitor, com uma magistral interpretação de Flávio Gil, este magnífico espetáculo é uma referência obrigatória para os apreciadores de bom teatro. Não é qualquer ator que aguenta sozinho as exigências de uma peça tão pesada como esta. Mas o talento e a criatividade de Flávio Gil estiveram à altura deste grande desafio. Aqui fica o registo e o meu abraço de parabéns.      

Este monólogo conta-nos a história (verídica) de um cidadão de 25 anos que, num dado momento da sua vida, decide assumir-se como é, rompendo com as normas convencionais e aceitando conscientemente o preço que iria pagar pela sua ‘desobediência social’.

Descendo as escadas do palco e penetrando na vida real, meditemos na mensagem que a peça nos trás e tiremos as nossas próprias conclusões: ninguém tem o direito de condenar seja quem for, e é preciso respeitar as opções e a maneira de ser de cada um. E mais: em certos casos, a nossa condenação pode tornar-se mortífera, destruindo para sempre um ser humano, como sucedeu com Valentim de Barros – que acabou por enlouquecer no hospital psiquiátrico para onde foi ‘desterrado’ durante quarenta anos, como quem cumpre uma pena, por lhe terem posto o rótulo de ‘louco’ devido a um desvio antissocial.

Mas deixemos a peça e interroguemo-nos acerca do seu conteúdo. Com a mão na consciência, façamos a pergunta: nunca condenámos ninguém? Nunca apontámos o dedo a alguém com uma opinião diferente da nossa? Respeitámos sempre outras maneiras de estar na vida? Na minha relação com os doentes tenho aceitado outras posições e maneiras de ser contrárias às minhas? Alguma vez mandei para um hospital psiquiátrico quem seguiu um caminho diferente do meu?

Hoje os tempos são outros, muita coisa mudou, e a nossa maneira de pensar evoluiu também. Contudo, o estigma da condenação nunca desapareceu completamente.

Vejamos, por exemplo, o que sucede em termos políticos: passámos a ter o direito de dizer aquilo que pensamos, mas ‘convém’ que seja dentro das normas politicamente corretas – pois, se nos afastamos delas, sujeitamo-nos a que nos rotulem e acusem disto e daquilo. E o mesmo se passa na esfera social, onde nos é exigida tolerância e aceitação em relação aos outros, mas nem sempre nos é dado o direito de não concordarmos com o que existe sem nos chamarem logo antiquados ou retrógrados.

No meio médico são frequentes as críticas de uns contra outros, que por vezes destroem o bom nome e a dignidade profissional das pessoas, por ninguém querer assumir responsabilidades. Quantas acusações sem fundamento dão cabo de tantos médicos e acabam definitivamente com a confiança que os doentes depositavam neles (e que levara tempo a conquistar)?

E nesta avaliação alargada não podemos ignorar também o comportamento de certos utentes que, por não verem satisfeitas as suas ‘exigências’ e aquilo a que consideram ter direito (mesmo sem justificação clínica para tal), condenam os médicos, colocando-lhes rótulos de incompetência na praça pública, depois difíceis (ou mesmo impossíveis) de apagar.

E quando se coloca uma cruz numa pessoa, atirando-a para os ‘hospitais psiquiátricos’ desta vida, por mais explicações que se deem ou por melhores que sejam os argumentos em sua defesa, o seu destino fica traçado e nada mais há a fazer.

Voltando à peça teatral, oxalá esta história nos ajude a rever o nosso comportamento e sobretudo a não condenar ninguém.

Olhemos para os ‘Mários’ das nossas condenações e não vejamos neles, nem em quem tem opiniões diferentes das nossas, uns inimigos a abater.

O que não significa que estejamos obrigados a concordar com as ideias ou com o comportamento dos outros. Respeitar não é sinónimo de concordar. É aceitar posições e pontos de vista diferentes, para que os outros também nos respeitem a nós. Esta é a chave do problema. Se conseguirmos este equilíbrio, que nem sempre é fácil de atingir, a vida passa a ter outro sentido e uma coisa é certa: estamos a contribuir para a construção de um mundo melhor.