Porque a morte não é reversível

Há questões ontológicas por resolver, como a delimitação de ‘sofrimento extremo’; no entanto, a mais preocupante é a dificuldade de colocar em terceiros a responsabilidade de matar.

A eutanásia acorda diversos fantasmas, sendo um debate difícil onde todas as posições devem ser ouvidas, com humildade, e respeitadas, com humanidade. 

No quadro legal atual, em Portugal, qualquer pessoa já pode recusar-se a ser submetida a tratamentos dolorosos, pedindo para lhe serem retiradas todas as dores até à hora da morte, ao limite da sedação profunda continuada. Além disto, pela figura do Testamento Vital, qualquer pessoa já pode, antecipadamente, decretar que recusa o prolongamento artificial da vida através de máquinas. Estas possibilidades existem e assentam na omissão de tratamento a pedido do próprio, assistida por cuidados continuados para eliminar a dor, estando excluída a eutanásia, ou a ação de outra pessoa na antecipação da morte a pedido. 

A iniciativa aprovada esta semana na Assembleia da República propõe uma alteração ao Código Penal nos artigos relativos a ‘Homicídio a pedido da vitima’ e a ‘Incitamento ou ajuda ao suicídio’. Onde hoje se lê: [art.º 134] «Quem matar outra pessoa determinado por pedido sério instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos» e [art.º 135] «Quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim, é punido com pena de prisão até 3 anos», propõe-se acrescentar: «A conduta não é punível quando realizada no cumprimento da lei que regula as condições especiais de antecipação da morte a pedido da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, praticada ou ajudada por profissionais de saúde». As ‘condições especiais’ são o pedido do próprio por documento escrito, validado por três médicos e enviado para uma ‘Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte’ que dará um parecer em 5 dias úteis. Esta Comissão inclui representantes de cinco entidades, três das quais já se declararam contra as iniciativas de eutanásia, nomeadamente a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).

Há questões ontológicas por resolver, como a delimitação de ‘sofrimento extremo’; no entanto, a mais preocupante é a dificuldade de colocar em terceiros a responsabilidade de matar. Como alerta o CNECV, «num sistema de saúde onde o cidadão é privado de um real alívio do seu sofrimento por não existirem condições para responder às suas necessidades clínica, psicológicas e espirituais», a invocada «liberdade absoluta de escolha… ignora a dimensão de enorme vulnerabilidade da pessoa que sofre». É palpável a possibilidade de erro e é imaginável que o pedido possa ser condicionado por interesses próprios do sistema, sejam económicos, sociais ou, até, políticos. 

Na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia inscreveu-se que «ninguém pode ser condenado à morte, ou executado». Sempre acreditei que a União tinha sido pioneira porque tinha entendido, com as grandes guerras, que o sistema podia decretar decisões erradas e que, perante um erro cujo resultado fosse a morte, a decisão seria irreversível. Desde então, a defesa da dignidade da pessoa assenta na certeza de estar protegida contra erros do sistema passíveis de decretarem o fim da sua vida. Na legalização da eutanásia, a comprovação do pedido de morte é feita por humanos que, por serem humanos, podem errar. Assim, hoje declaro-me contra legalização da eutanásia. Porque a morte não é reversível.