Evocação breve

«Talvez seja melhor ler uns livros durante uns anos antes de começar a dar opiniões». Vasco Pulido Valente

Fomos amigos, como a amizade nele se manifestava. Entendemo-nos sempre bem, num diálogo como ele pedia. Sentia que me achava também de algum modo um excêntrico, menor. 

Convivemos vários anos no GIS, o Gabinete de Investigações Sociais. Aí se revelou inteiro. Também o castigador de afetos, que a si próprio se castigava. 

Vivemos o 25 de Abril. Aconselhava-nos a comprar um queijo e ficarmos em casa. Um dia indignei-me por estar a ser ingrato com alguém que o compreendera e aceitara sempre. Editei-lhe nesse tempo na Dom Quixote o livro maior, O Poder e o Povo, que vi como ensaio para outras experiências. A dificuldade foi mediar a relação dele com Snu Abecassis, fazê-la compreender que iria editar um grande livro. E lá fui conseguindo segurar as fúrias dela – alimento que ele, aliás, procurava. 

Depois reeditei-o na Gradiva. Tudo pago à cabeça com rigor, que o Vasco era de imprudentes urgências. Na véspera de eu embarcar para Macau, onde integraria o gabinete do governador Rocha Vieira, telefonou-me para um almoço n’A Travessa, na Madragoa. Como sempre, urgente. 

Esperava-me na companhia do costume. «És o único editor a sério que há em Portugal», disse-me, ipsis verbis. «Quero que edites as minhas obras todas, entrego-tas todas». Ouvi isso como devia ouvir. Respondi o que ele esperava que eu respondesse, sabendo como o estimava e lhe admirava o talento singular e a irreverência. Editámos então dois ou três pequenos livros dele, em que recuperava artigos publicados. 

Ele assustava muito a nossa dedicada Hortense, nos telefonemas que precisava de lhe ir fazendo. Num dia em que teve de ir levar-lhe a casa os óculos que ele esquecera na Gradiva, ela encheu-se de pavor. O Vasco cultivava uma sobranceria de classe que assustava quem se impressionasse.

Depois, comigo ausente, as urgências e precipitações recorrentes, e o temperamento que lhe fazia esquecer os compromissos, levaram-no para outras seduções. Mas nada disso fez com que eu alterasse a estima e admiração por ele, que continuei a manifestar-lhe. E acho que ele também me apreciava, no que entendia ter eu para apreciar. 
Os nossos contactos telefónicos foram, porém, rareando. 

O Vasco Pulido Valente era, de facto, uma personalidade fascinante, uma personalidade singular no sentido que tem sido referido pelos que o conheceram. Personagem para o romance que desde O Poder e o Povo pressenti que ele desejaria ter escrito, que porventura terá querido e teria podido deixar, mas, narciso, nunca teve coragem para escrever. 
Um romance que faltou ao leitor e editor, que muito gostaria de o ter editado.