Não morrer da doença, morrer da cura

O que levou os governos a decretar o confinamento obrigatório foi sobretudo o receio de um colapso do sistema de saúde, tendo em conta a grande capacidade de propagação do vírus, que faz disparar rapidamente o número de infetados.

As pessoas estão assustadas.

Algumas em pânico.
Os jornalistas, com o instinto próprio da profissão, abrem os telejornais com notícias terríficas: tantos mortos aqui, tantos mortos ali, tantos mortos acolá, tantos milhares de infetados, etc.

Ora, vamos lá parar um pouco e tentar raciocinar friamente.

Recordo que no ano passado, em consequência da gripe, morreram 3 mil pessoas em Portugal.

Repito: 3 mil pessoas em 10 milhões de habitantes.

Transpondo este número para a escala planetária, considerando que a população mundial ronda os 7,7 mil milhões de seres humanos, significaria 2.310.000 mortos.

Sucede que até ao momento, em consequência do novo coronavírus, morreram em todo o mundo cerca de 25 mil pessoas.

Pouco mais de um centésimo daquele valor.

Portanto, tenhamos calma.
Aqueles que compararam o covid-19 a «uma simples gripe» não eram assim tão parvos como parece.

Aliás, segundo todos os estudos, 80 a 90% dos infetados têm sintomas ligeiros.

Qual é a grande diferença em relação à gripe comum?

É que é muitíssimo mais contagiosa (até porque o vírus se mantém ativo durante muito mais tempo fora do organismo) e a recuperação dos doentes é bastante mais demorada.

Quanto à mortalidade, é um pouco mais alta do que a da gripe (cerca de 3%, enquanto aquela ronda o 1%) mas não é assustadora.

O que levou os governos a decretar o confinamento obrigatório foi sobretudo o receio de um colapso do sistema de saúde, tendo em conta a grande capacidade de propagação do vírus, que faz disparar rapidamente o número de infetados.

Daí a célebre frase «Fique em casa», que constituiu a manchete da edição do SOL de há 15 dias e todos os media (e não só) adotaram.

Era este o único modo de parar a progressão da epidemia: se as pessoas ficassem em casa, não transmitiriam a doença a ninguém.

Era um grito de alerta geral.

Mas logo se viu que nem todos poderiam ficar em casa.

Se assim fosse, o mundo parava.

Para uns ficarem em casa, outros teriam de andar por fora, a trabalhar para eles e para outros que não pudessem deslocar-se.

Logo à partida, os médicos e os enfermeiros não poderiam ficar em casa.

Os bombeiros e pessoal do INEM não poderiam ficar em casa.

Assim como os polícias, os guardas republicanos, etc.

Os cuidadores de idosos doentes ou acamados não poderiam ficar em casa.

Os empregados das farmácias não poderiam ficar em casa.

Os trabalhadores de certas fábricas de bens essenciais não poderiam ficar em casa.

Os camionistas de transporte de géneros alimentícios e outros produtos de primeira necessidade não poderiam ficar em casa.

Os empregados dos supermercados não poderiam ficar em casa.

Os empregados dos restaurantes que confecionam comida para fora não poderiam ficar em casa, assim como os estafetas que distribuem comida e outros bens ao domicílio.

Os jornalistas não poderiam ficar em casa.

O pessoal dos correios não poderia ficar em casa.

E por aí fora.

E aqui põe-se um problema: os que não podem ficar em casa perguntarão um dia: por que é que fulano e sicrano, que tinham condições para ajudar nesta emergência, estão em casa fechados e resguardados e eu tenho de andar na rua a trabalhar, correndo o risco de ficar doente?

Como se disse, 80 a 90% das pessoas infetadas não têm problemas.

Sendo assim, como explicar que a maioria do país se meta em casa, parando a economia e arriscando a prazo uma gigantesca crise?

É a questão que pôs Pacheco Pereira: «Justifica-se tão grande mudança, para uma doença que, para a maioria, é razoavelmente benigna?».

Não seria mais lógico que todos os que não estão em idade de risco ou não têm doenças crónicas continuassem a trabalhar, mantendo a sociedade a funcionar, deixando o confinamento para os velhos e os doentes?

Aliás, foi o que tentaram alguns países, como a Índia ou o Reino Unido.

Boris Johnson, que é um homem inteligente, procurou perceber a totalidade da questão e não agir como aqueles que, ao grito de «fogo» numa sala de espetáculos, correm desordenadamente para as portas de saída, atropelando-se uns aos outros e provocando a morte de muitos.

Johnson percebeu o risco de uma paragem do país – e disse mais ou menos isto: «Os fracos protejam-se, os outros continuem a trabalhar e a fazer a sua vida».

Só que, perante o número galopante de contágios, assustou-se – e recuou.

O mesmo aconteceu de certo modo com Trump.

É compreensível: não quiseram ser acusados de negligência criminosa.

Não quiseram vir a ser responsabilizados se o número de infetados graves e mortos começasse a crescer em flecha.

Na dúvida, preferiram jogar pelo seguro.

Mas isso não significa que não tivessem razão.

O problema pode pôr-se assim: qual será a melhor estratégia – tratar primeiro da doença e depois tratar da economia, ou tratar ao mesmo tempo da doença e da economia?

É esta a questão.

Fernando Medina, o presidente da Câmara de Lisboa, tem mostrado lucidez, dizendo constantemente que «é preciso que o país não pare».

Porque, se isso acontecer – e está a acontecer – o day after será muito mais difícil ainda do que a situação que estamos a viver.

Nessa altura, muitas empresas terão fechado.

Muita gente terá perdido o emprego e não terá dinheiro para viver.

O Estado não terá dinheiro para acorrer a tudo – e a Europa não poderá ajudar muito porque os outros países também tiveram problemas; a menos que o BCE comece a imprimir notas para distribuir, mas aí haverá uma gigantesca inflação.

Perante isto, não tenho dúvidas de que a atitude mais inteligente teria sido os saudáveis e em idade ativa continuarem a trabalhar, os outros resguardarem-se; claro que teria de haver um cordão sanitário rigoroso à volta destes, para os primeiros não os contaminarem.

Não poderia acontecer o que está a passar-se nos lares de idosos.

Aquela seria a solução ‘ótima’.
Se quase tudo continuasse a funcionar quase normalmente, haveria muitos infetados ‘benignos’, mas também por isso a sociedade no seu conjunto ganharia mais depressa imunidade à doença; e a economia recuperaria muito mais rapidamente.

Com o ‘fique em casa’ generalizado, tudo vai ser mais difícil.

A doença vai prolongar-se por muito mais tempo (e muitos velhos serão apanhados por ela quando julgarem que já estão livres do mal), a economia vai ser devastada, haverá uma multidão de desempregados, fome, situações aflitivas, pessoas que adquiriram doenças mentais e depressões pela prolongada estadia entre quatro paredes, suicídios.

Às vezes, a resposta mais óbvia a um problema não é a melhor.

Mas isto só poderemos saber daqui a algum tempo.

Aí se poderá fazer uma reflexão mais serena sobre que estratégia teria sido melhor para enfrentar esta peçonha.