desdém do Governo de Mark Rutte quanto aos países do sul da Europa não é de hoje. Quando o seu ministro das Finanças, Wopke Hoekstra, recusa os ‘coronabonds’ – ou seja, emissão conjunta de dívida europeia, com o risco partilhado, garantindo financiamento à mesma taxa de juro a todos os países, em resposta à crise causada pela pandemia – querendo investigar antes porque falta dinheiro a Espanha, um dos países mais devastados pela covid-19, o argumento não é novo. Afinal, o antecessor de Hoekstra, Jeroen Dijsselbloem, já em 2017 nos tinha explicado que os países do sul da Europa gastavam todo o seu dinheiro em bebida e mulheres, para depois vir pedir ajuda. Antes disso, no rescaldo da crise de 2007-2008, a mesma lógica – em termos menos grosseiros – justificou a recusa da mutualização da dívida e duras medidas de austeridade, exigidas pela chanceler alemã Angela Merkel – com o fiel apoio do Governo holandês, liderado pelo antecessor de Rutte, Jan Peter Balkenende.
A recusa dos ‘coronabonds’ e a polémica de Dijsselbloem têm algo mais em comum: surgem em momentos eleitorais complicados. Em 2017, o Partido Trabalhista, de Dijsselbloem, sofreu a pior derrota eleitoral da história holandesa – o ministro tentava manter-se à tona como presidente do Eurogrupo. Já Hoekstra disputará brevemente a liderança do seu partido, o Apelo Democrata-Cristão, enquanto Rutte prepara as legislativas de 2021. O seu partido, o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD, na sigla neerlandesa) está à frente nas sondagens, mas o primeiro-ministro sabe que tem de roubar votos à extrema-direita, representada pelo Partido pela Liberdade (PVV), um antigo parceiro de coligação de Rutte, que vem logo atrás deste.
«Nesta área política, da direita mais liberal holandesa, este tipo de posições são populares», considera Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL). Perante um cenário de fragmentação política, num país onde as coligações são regra, «conseguir uma margem em relação aos partidos mais à direita já foi a chave dos ganhos do partido de Rutte nas últimas eleições», explica Cardoso Reis. «Aparentemente, ele acha que isso está funcionar».
O peso do custo económico
«A cultura política holandesa é de facto muito diferente dos países do sul da Europa. A questão da economia e do custo económico tem um peso enorme», nota Cardoso Reis. Até no que toca à própria pandemia de covid-19, os Países Baixos optaram por restrições menos rígidas – as escolas fecharam mas a maioria das lojas continuam abertas. «É explicitamente dito que isso pode ter custos sanitários, mas é necessário para não haver um custo económico excessivo. É um argumento que seria muito dificilmente aceite em Portugal», salienta o subdiretor do CEI-IUL. «Um ministro holandês dizia que na Holanda a única coisa que há de graça é o nascer e o pôr do sol», lembra.
Este paradigma transforma em pecado capital as características associadas aos países mais a sul. Por exemplo, ‘de Franse slag’, traduzido literalmente do neerlandês, quer dizer ‘à moda francesa’ – a expressão significa algo como fazer um trabalho ‘desleixado ou de má qualidade’. Espanha, por sua vez, é conhecida como o país ‘mañana’, como se nada fosse feito ali e tudo fosse deixado para o eterno amanhã. Sites de turismo holandês salientam-no como excelente motivo para visitar o país – para os eleitores da extrema-direita holandesa, que Rutte quer cativar, é mais um motivo para exigir políticas fiscais duras aos países do sul, mesmo em tempos de crise ou pandemia.
Não que a sociedade holandesa seja homogénea, atenção. Houve fortes críticas à recusa dos ‘coronabonds’ em amplos setores, até dentro da própria coligação de Governo e do governador do Banco dos Países Baixos, Klaas Knot. É que a instransigência de Rutte «pode ser até custosa para a reputação da Holanda e para a estabilidade da economia europeia, que é a base crucial da prosperidade holandesa», explica Cardoso Reis. Aliás, em Espanha, duramente atingida pela pandemia e que implora por solidariedade europeia, as manchetes já se referem ao primeiro-ministro holandês como «besta negra», o «popular liberal que afoga Espanha e Itália» e «declara guerra» ao sul. E destacaram os comentários do próprio primeiro-ministro português, António Costa, que apelidou a posição holandesa de «repugnante», categorização apoiada pelos homólogos dos países vizinhos.
Telhados de vidro
Como outros líderes, Rutte, que aos 53 anos vai no seu terceiro mandato, tem usado o seu destaque na arena externa – agora com os ‘coronabonds’, anteriormente com a investigação ao abate do voo MH17, entre Amesterdão e Kuala Lumpur, sobre a Ucrânia, em 2014 – para ganhar a popularidade perdida com as suas políticas internas. Há menos de dois anos, o Governo holandês teve de abandonar a sua proposta de acabar com a taxação de 15% aos dividendos, que não estava no seu programa eleitoral – beneficiaria sobretudo as multinacionais holandesas Shell e Unilever. As perdas em receita? Eram estimadas pelo próprio Governo em pelo menos 1,9 mil milhões de euros por ano, cerca de 0,25% do PIB. Apesar das críticas terem obrigado Rutte a recuar, os baixos padrões fiscais holandeses mantém-se, fazendo com que o país seja visto quase como um paraíso fiscal. Algo que a sua posição dura quanto aos ‘coronabonds’ poderá colocar sob maior escrutínio: os representantes espanhóis já começaram a levantar a questão. A sua posição é que ‘se a Holanda realmente quer investigar porque é que há problemas a nível orçamental e de recolha de impostos nos países do sul, temos de olhar para o papel da própria Holanda, facilitando a deslocação de impostos que deviam ser pagos em Espanha’, explica Cardoso Reis. «É o problema deste tipo de jogada».
Mais papista do que o papa?
Os Países Baixos «acabam por servir de ponta de lança em posições que a Alemanha também partilha mas não quer assumir de uma forma tão assertiva», recorda o subdiretor do CEI-IUL. Agora, a grande questão é se Rutte, no que toca aos ‘coronabonds’, estará a fazer o trabalho sujo de Merkel ou a ser mais papista que o papa. Por um lado, «a Alemanha não quer pagar o custo político de uma postura muito assertiva, até pelo seu histórico», explica Cardoso Reis. Isto porque não só as feridas da crise de 2007-2008 ainda não sararam, como os ‘coronabonds’ são comparados ao plano Marshall, de recuperação após a Segunda Guerra Mundial. Por outro, Berlim certamente quer evitar que a emissão de dívida conjunta se torne regra. Na próxima reunião do Eurogrupo, a 7 de abril, deverá ser apresentada uma solução de compromisso entre a perspetiva dos Países Baixos e a do sul da Europa: Merkel poderá pressionar para que os ‘eurobonds’ sejam uma medida limitada, ou que seja usado o Mecanismo Europeu de Estabilidade, criado após a última crise. A diferença para os ‘coronabons’ é que o dinheiro recebido através deste mecanismo aumenta o endividamento individual de cada Estado – sempre mediante condições impostas por Bruxelas, ou seja, um sinónimo de austeridade.
Esta discussão, que coloca em cima da mesa uma maior integração europeia a nível financeiro – algo recusado em 2007-2008, apesar dos apelos de muitos economistas, tem a particularidade de ser a primeira grande fratura europeia pós-Brexit.
Anteriormente, o campeão da oposição a uma maior integração europeia era o Reino Unido, que sempre foi um aliado reticente de Bruxelas, ao lado de outros países mais pequenos, incluindo os Países Baixos. «Obviamente que a Holanda não pode substituir o Reino Unido», assegura Bruno Cardoso. Se não o consegue, não é por falta de tentativas: em 2018 estabeleceram a Nova Liga Hanseática – em honra de uma antiga confederação de comerciantes e cidades-Estado medievais, vista na historiografia holandesa como uma das suas épocas áureas – que juntou a Dinamarca, Estónia, Filândia, Irlanda, Letónia, Lituânia e Suécia. É que, a apesar de tudo, os Países Baixos são «os maiores dos mais pequenos, não só em termos da economia», lembra o subdiretor do CEI-IUL. E podem muito bem liderar a insurgência destes países contra o eixo franco-alemão.