Hungria, uma democracia que já estava infetada

«A UE tem feito muito pouco para impedir Órban de construir a sua autocracia. Muito pelo contrário, a UE tem-no apoiado inadvertidamente», diz ao SOL R. Daniel Kelemen, professor de Direito e Ciência Política da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos.

Aproveitar uma boa crise tornou-se um ditado. Viktor Orbán aproveitou, foi rápido, incisivo e eficaz. Com o estado de emergência aprovado no Parlamento, o primeiro-ministro húngaro recolheu poderes para governar o país por decreto. E o campeão das chamadas «democracias iliberais» tem tido a conivência da União Europeia na sua viagem para conduzir a Hungria ao autoritarismo.

Muitos consideram que a democracia húngara já se encontrava infetada antes de o espoletar da pandemia: ao longo dos anos choveram críticas e alertas contra as intenções autoritárias, ou mesmo ditatoriais, de Orbán (que admite não ser adepto da democracia liberal) e a não assim tão lenta erosão da democracia húngara – a Hungria é o único país do bloco europeu a ser considerado «parcialmente livre» pelo think tank norte-americano Freedom House. Ora, se não foi o coronavírus a grande causa da morte da democracia húngara, pode ter fornecido o momento ideal para ser dada a machadada final.

Na segunda-feira foi aprovado o estado de emergência na Hungria, com uma maioria de dois terços, dando poderes plenos a Orbán, podendo a medida ser suspensa apenas pelo Governo ou pelo Parlamento, onde o partido de extrema-direita Fidesz, o seu, tem ampla maioria.

Futuras eleições foram canceladas e certas leis poderão ser suspensas unilateralmente pelo primeiro-ministro, que detém agora poderes para governar apenas e somente por decreto no âmbito do combate ao coronavírus, enquanto o período de exceção estiver em vigor: só tem que informar os parlamentares das suas decisões. Não foi imposto um limite ao período de estado de emergência (embora a oposição tenha tentado) e foi apertado o cerco aos jornalistas, agora proibidos de divulgar «informações falsas» sob penas pesadas de prisão.

Sem tempo a perder, no dia a seguir à aprovação do estado de emergência, Orbán seguiu com a sua agenda e tentou implementar uma lei que retirava poder aos autarcas – está enfraquecido no poder local, depois de ter perdidos várias autarquias, uma delas Budapeste – e outra em ataque aos transgéneros. Depois de críticas da UE e da oposição, recuou na primeira, mas manteve-se firme na segunda.

 

O apoio de Merkel

As reações institucionais na UE foram reticentes, como tem sido comum nas sucessivas derivas autoritárias do primeiro-ministro da Hungria. Ainda assim, o artigo 7.º do Tratado de Lisboa foi ativado, o que permitiria aplicar sanções ao país. «A UE tem feito muito pouco para impedir Orbán de construir a sua autocracia. Muito pelo contrário, a UE tem-no apoiado inadvertidamente», diz ao SOL R. Daniel Kelemen, professor de Direito e Ciência Política da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos.

«A Hungria é o maior destinatário dos fundos estruturais da UE, em base per capita, e o regime corrupto de Orbán tem direcionado largas proporções desses fundos para amigos e familiares», reforça Keleman, apontando responsabilidades aos conservadores alemães e à chanceler Angela Merkel: «Em particular, ele [Orbán] tem tido o apoio da CDU de Merkel – a qual tem constantemente bloqueado os esforços para sancionar o seu regime. Merkel é largamente vista como um modelo da democracia liberal – e em alguns pontos ela é-o, mas no que toca a Orbán, nunca proferiu uma palavra crítica».

A nova presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, eleita pelo PPE, segue os mesmos passos. A líder do Executivo europeu reagiu ao estado de emergência húngaro alertando os Estados-membros a não utilizarem as medidas do estado de emergência à «custa» dos «valores e princípios fundamentais» da UE como consignado nos Tratados: «A democracia não pode funcionar sem média independentes e livres». Mas, em nenhuma parte deste comunicado, referiu a Hungria. Na quinta-feira, em conferência de imprensa, já foi mais corajosa dizendo estar «particularmente» preocupada com a situação na Hungria. «Von der Leyen é da ala de pacificação do autocrata Orbán, da CDU e PPE, muito à semelhança de Merkel», considera Keleman. «Ela dependeu do apoio de Órban para ganhar a presidência e tem mantido a linha partidária de ser importante evitar divisões», explica o professor norte-americano.

 

Da suspensão ao pedido de expulsão

Mas a questão promete criar fissuras no seio do grupo de centro-direita europeu. Treze líderes partidários do PPE assinaram a carta em que pedem a Donald Tusk, ex-presidente do Conselho Europeu e líder desta formação, a expulsão do partido de Orbán, o Fidesz. «A maior razão pela qual Orbán tem prosperado dentro da UE deve-se ao facto de ele ter a proteção do PPE (do qual é membro). Protegem-no porque ele lhes dá votos no Parlamento Europeu e apoia-os em muitas questões no Conselho [Europeu] e porque querem evitar uma fratura no partido», explica Kelemen. «Os 13 partidos que assinaram [a carta] acreditam na democracia e querem Orbán fora. Aqueles que não assinaram», continua, «preferem apaziguar e capacitar o autocrata Orbán. É uma desgraça».

O Fidesz está suspenso do grupo de centro-direita europeu desde março do ano passado. Na quarta-feira, o presidente do PPE publicou um vídeo (inicialmente, foi uma carta ao partido) onde criticava a concentração de poder nas mãos de Orbán, dizendo que a crise provocada pelo coronavírus não podia servir para estender o seu «poder sobre os cidadãos» e até apontou o dedo a quem não quis expulsar o partido do primeiro-ministro húngaro. 

O PSD e o CDS, que integram o PPE, não constam na carta dos 13 que exigem a expulsão do Fidesz. Contactado pelo SOL, o eurodeputado do PSD Paulo Rangel, também vice-presidente do PPE, disse ser a favor da sua expulsão. «Quando, na quarta-feira, veio esse pedido para se assinar uma carta, de partidos que connosco tinham pedido a expulsão, no próprio dia surgiu uma carta do presidente do PPE, Donald Tusk, na qual diz que na primeira oportunidade promoverá a decisão de se passar da suspensão para a expulsão», esclarece Rangel. «Não vamos pedir ao presidente Tusk que faça uma coisa que ele já disse que ia fazer, não faz sentido», conclui.

Com João Rodrigues