Liberdade ainda vai demorar a reconquistar

Especialistas ajudam a perceber o caminho que se segue no combate à pandemia e defendem que é preciso traçar estratégias. Pensar em levantar restrições logo no início de maio parece prematuro, adverte a matemática especialista em epidemiologia Gabriela Gomes.  

Um mês e uma semana depois dos primeiros casos, a epidemia de covid-19 dá sinais de abrandamento mas a palavra de ordem continua a ser ficar em casa. A manter-se a tendência, durante as próximas semanas o número de novos casos confirmados diariamente deverá manter-se na casa das centenas – a expectativa é que, ao início, em valores mais constantes e depois tendencialmente a diminuir. Depois de reunir com especialistas esta semana, Marcelo Rebelo de Sousa deu pela primeira vez uma janela temporal para quando poderá começar o regresso à normalidade: «Se queremos ganhar a liberdade em maio precisamos de a ganhar em abril». Especialistas ouvidos pelo SOL ajudam a perceber o caminho que se seguirá depois da fase de emergência e que a liberdade, a chegar no próximo mês, não poderá ser total. À imagem do que aconteceu na China e está a ser planeado nas próximas semanas em vários países europeus. Até ao final de abril dificilmente será possível levantar as atuais restrições e é expectável que o estado de emergência, ou pelo menos algumas medidas, que vigoram até dia 17, tenham de ser renovadas por mais quinze dias. E depois?

Gabriela Gomes, matemática especialista em epidemiologia da Escola Superior de Medicina Tropical de Liverpool, no Reino Unido, tem estado a fazer a modelação da epidemia em teletrabalho em casa, no Porto. O norte tem sido o epicentro da covid-19 no país mas a doença não dá tréguas a quem está na linha da frente em nenhum ponto do país e a pressão continuará a ser muita. A investigadora admite, no entanto, que os dias trouxeram otimismo dentro do que era uma maior incerteza há duas semanas, quando ainda não se via o resultado das medidas de restrição de contactos.

O gráfico (ver abaixo), com as diferentes curvas, ajuda a perceber os cenários: «A linha vertical a tracejado é o dia 29 de março, que foi quando fiz o modelo. Na altura não se conseguia dizer se íamos seguir a curva laranja ou a azul e a azul era preocupante: íamos ultrapassar largamente a capacidade do sistema de saúde, o que seria uma tragédia. Agora não podemos aliviar medidas, mas os casos confirmados – as barras azuis que diariamente vai encaixando no modelo – parecem estar a seguir a curva mais moderada, o que resultou das medidas de supressão que o país tomou», explica. No modelo, que tem sido usado por diferentes equipas de investigação, calcula-se o impacto de uma redução de 75% dos contactos sociais. Neste cenário, e mantendo-se as medidas de contenção, a previsão é que Portugal venha a registar cerca de 25 mil casos confirmados na primeira vaga da epidemia.

O vírus vai continuar

A ideia de que estamos diante da ‘primeira vaga’ ajuda a perceber o que se segue. É consensual entre os investigadores que aliviando as medidas abruptamente, rapidamente o vírus, que circula na comunidade, se tornará a propagar – tal como há 100 dias na China ou no início de março em Portugal, a maioria da população continua sem ter defesas contra a doença. E a subida sem controlo é exponencial. Resulta do chamado número básico de reprodução, que no caso do novo coronavírus se estima que se se situe – sem medidas – entre 2 e 3, ou seja, cada pessoa infetada contagia entre duas a três. Quanto mais pessoas infetadas, mais potenciais cadeias de transmissão. Com supressão de contactos sociais, o plano foi baixar esse fator de reprodução ‘R0’ para menos de 1: um infetado não contagia ninguém. Mas se a supressão de contactos parece ser unânime para prevenir um primeiro tsunami de casos e o colapso dos sistemas de saúde, a longo prazo é insustentável e não resolve o problema de o vírus ser novo, a população não ter imunidade e não existir uma vacina. E este ‘R0’ tende a aumentar de novo. «O que conseguimos nesta fase foi controlar o primeiro impacto, a primeira vaga. Estamos de parabéns, as autoridades de saúde e principalmente o povo português que percebeu que tínhamos de limitar os contactos sociais e isso permitiu não sobrecarregar o sistema de saúde até agora», diz Pedro Simas, virologista no Instituto de Medicina Molecular de Lisboa. «A questão que se colocará na próxima fase é que, em termos pandémicos, não se controlou ainda nada. O potencial é maior do que havia no início. Neste momento há mais focos de vírus do que tínhamos no início de março, em praticamente todos os distritos há casos, que conhecemos, e assintomáticos. Todos estes casos podem iniciar a transmissão. Se em maio se libertasse a população toda de uma vez, a segunda vaga seria colossal. Portanto, depois de resolver o problema emergente que é controlar o número de infeções para não sobrecarregar o sistema de saúde, temos de pensar em estratégias inteligentes para resolver o problema da pandemia. E perante a pandemia temos três ferramentas: distanciamento social, adquirir imunidade de grupo através da infeção natural, da forma o mais controlada possível e protegendo os grupos de risco e a vacina, que não sabemos quando chegará. E não podemos ficar à espera dela porque podem ser 18 meses. Temos de ter uma estratégia para adquirir a imunidade de grupo».

Teletrabalho para alguns

Voltamos a maio, o mês apontando como o princípio do que se segue. Para Gabriela Gomes, a modelação da epidemia neste momento sugere que será prematuro levantar as medidas restritivas no início do mês. «Se continuar esta tendência, no início de maio ainda teremos um número substancial de casos e penso que só podemos levantar as medidas quando estivermos muito próximo do zero. No dia 1 de maio teremos cerca de 60 casos confirmados, mantendo-se as atuais medidas. No final do mês estaremos com cerca de cinco, seis casos».

A discussão sobre a abertura das escolas para o ensino secundário é a que mais tem estado em cima da mesa mas o princípio aplica-se a todas as decisões que será preciso tomar: é preciso pesar o potencial de propagação da doença e como se vai proteger os grupos de risco, a população mais velha e com maior morbilidade, onde a taxa da letalidade da covid-19 dispara, ao mesmo tempo que se poderá reabrir com medidas de distanciamento social outros setores. «As escolas não é o que tem mais impacto no crescimento da epidemia, todas as medidas terão de ser vistas de forma cuidada e ao pormenor», diz Gabriela Gomes, defendendo que o regresso à normalidade terá de ser faseado e que mesmo que algumas atividades possam reabrir, o desejável será manter alguma mitigação dos contactos sociais, com algumas profissões a continuarem em teletrabalho mais tempo. «Até se poderia pensar em medidas em alguns contextos como as pessoas irem em dias alternados ao local de trabalho, da mesma forma como em algumas cidades só podem circular carros com matrícula par ou ímpar», exemplifica. Restaurantes e cafés poderão regressar ao funcionamento, mas é expectável que a lotação seja menor, já que o distanciamento social continuará a ser uma das ferramentas para prevenir o reaparecimento de surtos. Da mesma forma cinemas e salas de espetáculo poderão ter de adaptar-se, admite a investigadora, por exemplo ficando lugares vagos entre os espetadores.

Filipe Froes, pneumonologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos criado para a epidemia de covid-19, mostra também confiança de que o país poderá começar a reabrir em maio, mas sempre gradualmente. E acredita que podemos aproveitar a experiência de outros países para perceber o que funciona melhor. «Temos de ter a noção de que teremos de reabrir com segurança para não se desperdiçar o que se fez antes. Abrir alguns setores primeiro e manter uma forte vigilância epidemiológica».

E aqui a máxima 'testar, testar, testar' vai ter de ser assegurada. Filipe Froes defende também que, além de se manterem as regras de distanciamento social, como deixar espaço nas filas e nos locais públicos, provavelmente as pessoas terão de usar máscaras em espaços fechados como supermercados e shoppings, como de resto já tem sido recomendado noutros países e como tem vindo a apelar a Ordem e o Conselho Nacional de Escolas Médicas. «A questão de utilização de máscaras em locais fechados ou espaços públicos em que o distanciamento social não seja fácil de implementar não é se vamos usar, mas quando vamos usar. E se isso permitir reabrir o país, qual é o problema? Poderão não ser máscaras cirúrgicas, se houver dificuldades no abastecimento e as máscaras forem necessárias para os profissionais de saúde, mas poderão ser outro tipo de máscaras».

Filipe Froes defende também que quanto mais cedo se delinearem e apresentarem estratégias, mais fácil é envolver o tecido industrial, empresas e a própria sociedade civil, que poderão contribuir com soluções para as necessidades que o país terá nos próximos meses no combate à pandemia. «Da mesma forma como hoje vemos o Citeve (Centro Tecnológico das Indústrias do Têxtil e do Vestuário) a mobilizar as empresas para a produção de máscaras, se se disser agora que numa sala de cinema as pessoas poderão ter de estar a dois ou três metros distância, os próprios cinemas arranjam estratégias para se adaptar», exemplifica. Os grandes ajuntamentos terão de ficar para mais tarde, concordam os três especialistas, sem arriscar datas. «Penso que a incapacidade de estarem mais de duas ou três pessoas em 25 metros quadrados vai ter de se manter durante algum tempo», diz Filipe Froes.

Testes de imunidade, a próxima corrida

Uma ferramenta essencial na fase que se segue serão os agora mais falados testes de anticorpos ou de imunidade. O virologista Pedro Simas explica que ainda não é certo se este vírus confere uma imunidade de seis meses ou para a vida, mas defende que essa questão não deve adiar a definição de estratégias. «Sabemos que as pessoas que contraem infeção e recuperam, desenvolvem imunidade, se é de curta ou longa duração não sabemos, mas desenvolvem imunidade. Nunca na natureza isso não aconteceu. Há vírus que provocam imunidade para a vida e outros de longa duração, mas todos ficam em maior equilíbrio».

Atualmente já existem alguns testes rápidos de anticorpos no mercado – Marcelo fez um e a Câmara de Cascais anunciou um projeto que vai testar semanalmente uma amostra da população, mas a Direção Geral da Saúde considerou esta semana prematuro avançar para testes serológicos a nível nacional. Fernando Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, explicou ontem que é necessário esperar mais algumas semanas pela evolução da curva epidemiológica do país, sublinhando que a questão não é a credibilidade dos atuais testes mas a sua ‘oportunidade’, dado que nesta fase a percentagem de população exposta à doença ainda é baixa. Simas explica que os testes atuais têm por vezes uma baixa sensibilidade mas poderão dar uma primeira ajuda na fase que segue, ao mesmo tempo que os centros de investigação, como o IMM e o IPATIMUP, estão a desenvolver testes laboratoriais mais fiáveis e que permitirão ao país não depender tanto dos mercados. Depois dos ventiladores e zaragatoas, os testes de imunidade deverão tornar-se dos itens mais procurados. Para o investigador, independentemente das medidas que venham a ser definidas, o foco deve ser proteger os grupos de risco e os testes de imunidade poderão contribuir para essa estratégia. «Imagine um bairro pequeno, com uma clínica, um lar, um supermercado e na minha casa tenho um idoso. Se sei que tenho um idoso em casa, um pai, coloco-o num quarto mais reservado em casa e as pessoas que contactam com ele ou são pessoas que sei que estão imunes com estes testes ou que foram testadas porque estiveram infetadas ou então eu continuo a levar-lhe os alimentos e confecioná-los com todos os cuidados. Se souber que estou imune, já posso entrar no quarto dele. E isto replica-se às outras instituições, aos lares, a instituições como a Cáritas».

Na linha da frente para estes testes deverão estar profissionais de saúde e quem contacte com grupos de risco, defende Pedro Simas. Ao mesmo tempo, serão necessários então inquéritos serológicos para avaliar como está a evoluir a imunidade na população – essa é outra fase. A perspetiva dos investigadores é que seja necessário que 70% da população tenha estado exposta ao vírus para que se crie uma barreira protetora contra a doença que diminua a probabilidade de existirem surtos. No sarampo, o vírus mais contagioso – numa situação sem vacina estima-se que cada pessoa infetada contagie 12 a 18 pessoas – a imunidade de grupo tem de ser superior a 95%, o que neste caso torna o desafio mais concretizável mesmo sem haver vacina, diz Pedro Simas, com a vantagem de o vírus causar doença ligeira em 95% dos casos, 98% se se excluírem os grupos de risco. E esse é um dos motivos que o leva a admitir que a solução da pandemia pode mesmo estar na exposição controlada e gradual ao vírus, já que a vacina poderá levar mais de um ano a ser uma hipótese e neste momento não existem certezas de que funcione. «Seria como uma vacina atenuada», diz. O risco existe, mas é comparável ao de outras doenças e mesmo as vacinas não protegem a 100%.

Quanto tempo demorará a alcançar a imunidade de grupo com a letalidade mais baixa possível é a equação que se coloca. Gabriela Gomes, que está a desenvolver um projeto de investigação focado nesta questão na Universidade do Porto, defende no entanto que a percentagem de população que precisaria de ser infetada para se obter a imunidade de grupo poderá ser menor do que a sugerida pelos modelos clássicos. «A teoria matemática clássica das epidemias foi desenvolvida organizando a população em compartimentos homogéneos, em particular assumindo que todas as pessoas têm a mesma probabilidade de ficar infetadas se forem expostas ao vírus», explica. «Evidentemente, isto não é verdade. Penso que teremos que abandonar a simplificação da homogeneidade se quisermos fazer projeções úteis em relação à imunidade de grupo. Os modelos clássicos preveem que 70% da população terá que estar imune para acabarmos com os ressurgimentos de covid-19. Já os modelos com heterogeneidade na suscetibilidade indicam que 10% de imunidade poderá ser suficiente».

2% da população infetada

A investigadora estima que atualmente pouco mais de 2% da população esteja imune em Portugal: seriam precisos cinco vezes mais para conseguir essa barreira protetora. Pedro Simas coloca reservas: «Se fosse assim seria bom, mas do que sabemos da virologia e da história das doenças infecciosas é que será preciso mais. Aceito o modelo, gostaria muito que estivesse correto mas neste momento o que é mais provável é que seja 60% a 70% como noutros vírus».

Consensual é que até se atingir a imunidade de grupo ou haver a vacina, terão de manter-se restrições para evitar que eventuais surtos se transformem numa segunda vaga de infeções. No modelo com que Gabriela Gomes tem estado a trabalhar, levantadas as medidas de contenção em junho e sem mais medidas, seria expectável uma segunda vaga em outubro. «É o que queremos evitar», diz, defendendo que as medidas terão de ser ponderadas e avaliadas para perceber se surgem novos casos e evitar que alastrem. E estar preparado para, se for necessário, voltar a apertar medidas de contenção. A nível local com cercas sanitárias ou uma contenção geral, dependerá dos decisores. «Se o fizermos, não estaremos a falar de uma segunda onda mas de uma sequência de mini-ondas, mais comportáveis para o sistema de saúde. Teremos períodos de maior folga e outros de maior contenção», diz, comparando ao pára-arranca do trânsito, em que é preciso paciência, mas se sabe que se caminha para a meta. Pedro Simas prefere falar de um ano intermitente, sem paragens mas com ajustes, em que aos poucos se evolui para a imunidade de grupo. E propõe que sejam discutidas vantagens e desvantagens das diferentes ferramentas que têm vindo a ser equacionadas noutros países, da ideia de certificados de imunidade às aplicações que fazem o rastreio de localização de pessoas que estejam infetadas, que causam alguns anticorpos neste lado do mundo.

 «Sabemos que temos um regime constitucional diferente de outros países, mas na Coreia do Sul as aplicações são voluntárias e permitem perceber os ‘hotspots’ nas cidades. Numa situação de emergência, as pessoas se calhar têm de perder um bocadinho da sua liberdade individual. Já perdemos na realidade. Antigamente também só podíamos inscrever os nossos filhos nas escolas com boletim de vacinas. O que está em causa aqui é o bem comum da sociedade», diz o investigador, defendendo que a estratégia nacional deve envolver os diferentes setores, sociólogos, economistas, até porque considera que o maior desafio não é o vírus em si mas todas as questões sociais que se vão colocar e o bom senso que será necessário. Para Gabriela Gomes, a adesão da população será determinante e o desafio será ver como a sociedade se acomoda e, em função disso e da evolução epidemiológica, gerir medidas mais ou menos restritivas.

Férias, idas à praia, ainda vale a pena pensar nisso? Certezas não há, mas a resposta tende para o pouco provável – ou aconselhável – se isso significar multidões. «Geralmente para termos férias planeamos com antecedência, fazemos marcações. Neste caso não podemos saber com muita antecedência se aquilo que marcámos se pode concretizar, o que vai exigir um esforço de apoio ao setor balnear e do turismo que serão afetados», diz Gabriela Gomes, que acredita que a incerteza se vai manter ao longo do próximo ano. «Espero que no verão de 2021 já tenhamos as nossas férias normais, as nossas vidas mais normais. É tentar guardar o que queríamos fazer este ano para o ano. Será muito difícil para os setores mais afetados e terão de ser definidos apoios, mas ficar mais em casa para muitos de nós é um incómodo, sim, mas estamos a fazer história. Daqui a dois ou três anos vamos poder olhar para isto se calhar com algum orgulho. Todos contribuímos. E estamos a inventar soluções que poderão ser úteis para sociedade no futuro».