Joana. O dia em que o Papa João caiu do cavalo e deu à luz

Única papisa, Joana terá ocupado o cargo mais alto da igreja católica entre os reinados de Bento III a Nicolau I (de 856 a 858). A história da sua vida, ascensão e queda, verdadeira ou inventada, está envolta em mistérios e termina no episódio macabro de ter sido mãe no meio de uma procissão.

A confusão espalha-se pelos papéis que acumulo à minha frente. Há teorias infindáveis. Gente que escreve com a irrefutável certeza do sim, outros que fazem da negação uma barricada inexpugnável. Um hiato no meio dos papados de Leão IV (847-855) e de Bento III (855-858), de apenas uns meses sem chefe da igreja de Roma, abriu a brecha para que o mito entrasse de rompante. Uma mulher teria ocupado a cadeira de Pedro durante esse período, embora os primeiros escritos sobre a matéria só tenham surgido no Século XIII, na fase em que as reivindicações papais atingiam as raias do absurdo, num livro da autoria de um dominicano, Estêvão de Bourbon, De Septem Donis Spiritu Sancti, As Sete Ofertas do_Espírito Santo. Russel Chamberlin, historiador e biógrafo, por seu lado, resume os factos nesta frase: «Um génio da propaganda desconhecido lançou na História a aventura bizarra e duradoura de uma mulher que ascendeu ao trono papal e governou com o nome de João».

Diga-se logo de entrada: o episódio é contado, recontado e requentado em milhares de páginas assinadas tanto por quem pretende ser cientista impoluto como por charlatães emproados, bestas de 126 patas e analfabetos de pai e mãe e restante família. Tanto vale declará-lo como facto ou como mero folclore, depende do volume consultado. Há até dados tão pormenorizados que dão o papado de João VIII contabilizado em dois anos, um mês e quatro dias, entre os tais anos de 855 e 858 que nos registos só abarcam a ascensão de Bento, ou Benedictus como gostavam de grafar em latim. Mas esses registos de Roma eram escassos e muitas vezes, até inexistentes._O mais fiável parecia ser uma espécie de opúsculo criado por um monge do mosteiro de Monte Soracte, Anastasius Bibliothecarius, um tipo manhoso, mais tarde excomungado, que se deu ao luxo de idealizar uma obra de estadão: Liber Pontificalis – O Livro dos Papas. Só que os Papas iam e vinham com uma frequência que dá para desconfiar das datas. O final do século IX apresenta-nos uma Roma bem longe da Roman Caput Mundi: em plena desintegração social, um urbe de ruelas pavimentadas a esterco, invadida por toda a espécie de bandidos e prostitutas, que mergulhou finalmente na anarquia no momento escabroso do Synod Horrenda, ou o_Sínodo do Cadáver, o julgamento póstumo que Estêvão VI (ou VII, há dúvidas, já tinha avisado…) impôs ao seu antecessor, Formoso, na Basílica de_São João de_Latrão, na altura sede do pontificado. Desenterrado o cadáver, Estêvão expô-lo perante um concílio, insultou-o de todas as formas que conhecia, e eram muitas, pelos vistos, e acusou-o de ter, ao contrário do que mandava a lei canónica, aceitado ser bispo de Roma quando era bispo de outra diocese. Inevitavelmente condenado, o féretro foi despido, arrancaram-lhe os três dedos da bênção da mão direita, e atiraram-no para a rua onde uma multidão raivosa o arrastou pelos pés até o lançar às águas sujas do rio Tibre. A ascensão à cadeira de Pedro era resultado de maquinações políticas, de fações sociais e de intrigas constantes de tal ordem que durante a fase do Julgamento do Cadáver e suas réplicas, de 872 a 965, houve nada menos de 24 Papas. Isto se as contas estão corretas e não serei eu a pôr as mãos no fogo por elas.

Serve o exemplo atrás descrito para se compreender a leviandade do papado. E, sobretudo, a extrema dificuldade em obter critérios precisos em relação ao que se passou na altura. Foi Martim de Opava, ou Martim da Polónia, confessor de uma série de Papas, desde Alexandre IV a Nicolau III, passando por_Urbano_IV, Clemente IV, Gregório X, Inocente V, Adriano V e pelo nosso Pedro Hispano, João XXI, que fez a primeira identificação da tal Papisa Joana que terá sido Papa João VIII: no seu Chronicon Pontificum et Imperatorum, Crónica dos Pontífices e Imperadores, publicado no final do século XIII, apresentou-a como uma rapariga natural de Mainz, John Anglicus, que teria entrado num mosteiro disfarçada de rapaz para seguir as pisadas do moço por quem estava apaixonada. Era dona de uma inteligência arguta e de uma capacidade incomum de armazenar conhecimentos. Não tardou a galgar a escadaria hierárquica da igreja. Sem jamais revelar o seu segredo. Mantinha o nome de John, com o qual terá sido batizada muito masculinamente, por mais mulher que a anatomia a confirmasse.

 

Mito contra o mito

Se toda a história até aqui é confusa, não irá deixar de o ser de agora em diante. Jean de Mailly foi outro monge dominicano que escreveu sobre John Anglicus, ou Joana, como passou a ser tratada a partir de certa altura, dando-lhe o nome da Papisa Esquecida. Na catedral de Siena, chegou a existir um busto dela no meio de outros representando vários Papas com a indicação Johannes VIII, Foemina de Anglia. Michael Habitch, um arqueólogo australiano da Flinders University, em Adelaide, veio recentemente remexer no assunto. Há, como veem, vários caminhos a seguir nestes cruzamentos do mito da mulher-Papa. E, como entra pelos olhos dentro, a questão no próprio seio da Santa Madre Igreja não é de forma alguma despicienda se levarmos em conta a forte discussão sobre a ordenação feminina. A confirmação de uma Papisa serviria de argumento muito conveniente para aqueles que defendem que as mulheres também deveriam poder envergar o cabeção.

Habitch foi um estudioso compulsivo do Liber Pontificalis e, como seria de esperar, sabendo de onde vinha, em que tempo, e idealizado por quem, tratou de lhe encontrar falhas incompreensíveis, uma das quais contribuindo para os adeptos da existência de Joana: Bento III pura e simplesmente não é referenciado. Logo aquele que fora Papa entre 855 e 858. Quando viajou para Roma e se lançou à árdua tarefa de estudar os túmulos de vários pontífices, Michael tratou de inspecionar ao pormenor as moedas cunhadas nos anos referentes e chegou à conclusão de que há claras diferenças entre as que têm o símbolo do Papa João VIII, que reinou entre 872 e 882, e as que têm o monograma de outro João, embora não numerado. «No início, estava convencido que esta história da Papisa Joana não passava de mera ficção, mas tenho vindo a assentar ideias diferentes», revelou num documentário realizado em 2018. «As moedas que examinei têm, de um lado, a efígie do imperador dos francos e, do outro, o monograma papal. Um deles é claramente o de João_VIII, outro surge com diferenças evidentes tanto no desenho como na colocação das letras, o que me faz pensar que poderá ter havido, na realidade, outro Papa chamado João no período em causa. E aí podemos estar perante Joahannes Anglicus, Papa João que era Joana. Estas moedas datam de 856 a 858. Um cronista de nome Conrad Botho refere num dos seus relatórios que um Papa chamado João coroou Luís II de Itália como Imperador do Sacro Império Romano._No ano de 856. Refere-o como Papa João VIII segundo». A partir destas notas, Michael resolveu rever o Livro dos Papas. E alinhou-os desta forma: Leão IV de 846 a 853, Bento III de 853 a 855, João Anglicus de 856 a 858, Nicolau I de 858 a 867.

Estêvão de Bourbon ficaria certamente feliz com as conclusões de Habitch. Tal como o nosso polaco Martim que dá o início do reinado de Joana/João no ano de 855. Apesar de natural de Mainz, seria filha de pais ingleses e teria seguido o seu amante para Atenas onde entraram ambos num mosteiro. Graças à força dos seus conhecimentos e da sua sabedoria, foi chamada a Roma e elevada a cardeal, sempre escondendo a natureza do seu sexo. O rapaz seguiu-a mais tarde. De cardeal, Joana subiu a notária papal e, em seguida, foi eleita Papa. Papa João e não Joana, claro está. Se a liberalização do sexo – em todas as suas modalidades – era mais do que aceite nos pontificados daquele tempo, nada impediu João/Joana de, já no lugar santificado de Pedro, manter a sua vida íntima. Com a diferença gritante de que, até que o bom Deus resolva reconstruir o mundo de pernas para o ar, os homens, ao contrário, das mulheres não engravidarem. E se tantos foram os Papas que tiveram filhos, coube logo a este dar à luz durante uma procissão de época das Rogações, na rua que ligava o Coliseu à igreja de_São Clemente. Montada no seu cavalo, precedida por um séquito numeroso, Joana/João ia acompanhada pelos seus bispos, cardeais, magistrados e tudo quanto era gente nobre da cidade. As dores de parto foram tão súbitas e tão fortes que caiu da montada e se estatelou no lajedo retorcendo-se e gritando por auxílio. Quando lhe rasgaram as vestes, já o ventre expulsara a criança. A cena, a ser autêntica, terá tido muito de grotesco. Atarantados, os clérigos procuraram rodeá-la para a afastar de olhares curiosos, mas não foram capazes de impedir que o rebento sufocasse.

O povo ficou, naturalmente, estupefacto com o que estava a acontecer. E a estupefação redundou em indignação. Joana, que era João, voltou à sua condição de Joana. A turbamulta amarrou-a à garupa do cavalo e levou-a para um local onde a apedrejou até à morte. A festa da Ambarralia fora definitivamente manchada pelo horror do sangue e da ignomínia.

 

A cadeira da masculinidade

Parece que a igreja tomou de imediato medidas para que episódios espalhafatosos como este não voltassem a repetir-se. Os Papas que se seguiram já foram sujeitos ao teste da chamada «sedia stercoraria», ou cadeira-retrete, um assento que continha um buraco na parte traseira de forma a que um cardeal pudesse inserir a mão e confirmar a existência de testículos no organismo do futuro pontífice. Depois erguia a voz e assegurava aos presentes: «Duos habet et bene pendentes!» (Tem dois e bem dependurados).

Mas se a vida de Joana que foi João e morreu como Joana deu pano para mangas, a sua morte deu pano para vestes cardinalícias inteiras. No local em que foi enterrada, fixaram um lápide dizendo: «Petre, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum», qualquer coisa como, em tradução liberal, «Petro, nosso pai, traído pela gravidez da Papisa». Um certo Jean Pierier de Mailly, cronista dominicano de Metz, deitou mãos à obra na sua Chronica universalis Mettensis, Crónica da Diocese de Metz, e arranjou ainda mais confusão onde já havia confusão que sobrasse, situando a morte de Joana em 1099. O nosso já conhecido Martim de Opava salvou-a, por seu lado, de morrer por lapidação e deu-lhe mais uns anos de vida, embora confinados a um cárcere na mais completa solidão. Aproveitou a embalagem e salvou também o recém-nascido que se teria dedicado tão profundamente aos mandamentos da Igreja que acabou como Bispo de Óstia, tendo lá deposto os restos mortais de sua mãe.

A matéria não se ficou por aqui. Era demasiado suculenta para não atrair cronistas como moscas, este que se assina integrado no enxame. Robert d’Uzés, outro frade dominicano do século XIII, reclamou para si uma versão mais máscula na qual em vez de João passar a ser Joana provava ser João: «Sentado numa cadeira, o Papa João abriu as pernas e provou a sua masculinidade». Bartolomeo Sacchi, mais conhecido por Bartolomeo Platina, um professor que chegou a ser chefe da Biblioteca do Vaticano, não esqueceu a Papisa no seu Vitæ Pontificum, a história de todos os Papas que antecederam o seu protetor, Sisto IV (1471-1484). «Chamava-se John, era inglesa, e atingiu o papado através dos mais vis dos artifícios, os do engano e do disfarce. É pouco citada por vários autores, mas prefiro registar aqui a sua existência, mesmo que obstinadamente, do que enganar toda a gente ao calar aquilo que não me parece ser credível».

Um historiador do século XVI, Onofrio Panvinio, saiu-se com uma teoria bem mais rebuscada: a Papisa Joana foi, na realidade, o Papa_João XII. Explicava o motivo: João colecionava amantes atrás de amantes, uma das quais, chamada Joana, teve tanta ascendência sobre ele e sobre as decisões que tomava que o poviléu, por troça, passou a tratá-lo por Joana.

A peregrinação sobre a lenda de João, ou Joana, como quiserem, neste momento já estamos como no princípio do Direito que contempla a extinção por confusão, torna-se infinita. Michael Habitch, o grande defensor atual da sua existência, parece ter-se recolhido a estudos mais silenciosos: «Alguns leram o meu trabalho e aceitaram determinadas conclusões. Outros atiraram-se a mim na imprensa e começaram a fazer um ruído enorme em redor do assunto. Acho que se responder vamos entrar numa guerra de lama sem interesse. Que pode muito bem durar para sempre». Frase de quem não parece saber no que se mete quando resolve discutir matéria que envolva dogmas. E de quem não prestou muita atenção à posição dos protestantes sobre Joana/João no século XV, depois do Conselho de Constância, em 1415. Ou da arma de arremesso em que a Papisa se transformou no advento do Calvinismo. Escavar a história de Roma nesse tempo em que mergulhou na escuridão é, como afirmava Chamberlin, tatear à luz de uma vela bruxuleante que ora resplandece ora se desvanece quase até ao nada. Assim se prolongam os mistérios. Da fé ou fora dela…