A anatomia da petroloucura

O contrato para entrega em Maio ficará para sempre na história como o primeiro a registar um preço negativo 

Na passada semana os mercados energéticos produziram mais um momento de surrealismo nesta crise, quando o petróleo registou pela primeira vez na história um preço negativo. Era uma hipótese cada vez mais falada nos mercados financeiros à medida que o limite de capacidade de armazenagem se aproximava, e foi essa a principal razão por detrás do fenómeno, mas não a única.

O mercado de petróleo funciona através de contratos mensais que representam uma obrigação de comprar/vender uma quantidade fixa de barris numa data subsequente – daí serem referidos como contratos de futuros. O preço cota livremente dependendo da procura e oferta por parte de indústrias produtoras e consumidoras – que representam o grosso de transacções – e especuladores que procuram assumir o risco de preço que essas indústrias pretendem remover das suas operações.

O contrato para entrega em Maio ficará para sempre na história como o primeiro a registar um preço negativo, uma forma extrema do mecanismo de preço recrutar o máximo de formas de armazenagem alternativas à medida que as tradicionais se esgotam. Chegamos a este ponto devido à guerra de preços saudita – dissecada no Causa-Efeito de 14 de Março – que veio exacerbar o excesso de oferta no mercado já sentido por via da queda abrupta de procura induzida pela pandemia covid-19. Enquanto o excesso de oferta era absorvido em parte pela capacidade de armazenagem – dado os custos de paragem de produção serem elevados – os preços caiam de forma ordenada. Quando o precipício do limite de capacidade se aproxima, a situação fica mais dramática devido à redução drástica do leque de potenciais compradores.

Este movimento espetacular atraiu alguns curiosos ao mercado, em busca do el dorado de dinheiro fácil. Muitos destes investidores de retalho compraram um fundo ETF que replica aproximadamente o preço da matéria prima. Porém, a grande maioria seguramente não se informou o suficiente e assumiram que o fundo deteria o contrato louco de Maio. Na verdade, e seguindo o seu mandato predeterminado, o fundo detinha o contrato seguinte, de Junho, que cotava acima dos 20 dólares numa altura em que Maio galgava as profundezas do preço negativo. O fundo ETF não teria sobrevivido caso detivesse contratos a preço negativo, dado isso representar o seu valor patrimonial logo obrigaria a liquidação. O risco de liquidação mantém-se, caso o contrato de Junho vier a replicar Maio, por essa razão os gestores decidiram limitar a possibilidade de novas entradas por forma a reduzir a extensão do possível rombo. Isto significa porém que a capacidade do fundo seguir fielmente o preço do petróleo fica seriamente posta em causa – a cotação do fundo e o seu real valor patrimonial tenderão a desviar-se – logo este veículo de investimento perde a sua eficácia, e muitos que procuravam dinheiro fácil irão aprender a lição que tal não existe.

Olhando para os preços dos contratos para o resto do ano, podemos deduzir que a expectativa aponta para uma gradual normalização deste mercado quer pela via da procura – à medida que as economias reabrem – quer por via de possíveis acordos de redução de produção global – que após a recente petroloucura ficam agora mais prováveis. Será mais um momento para recordar nesta crise, mas uma tempestade perfeita que dificilmente se irá repetir com a mesma magnitude.

Ricardo Seabra

Gestor de fundo de investimento macro