Hino Nacional por Nicholas Ratcliffe

Ficou conhecido nas redes sociais por animar a Av. de Roma todos os sábados às 22h pelos seus ‘concertos’ de varanda. Ao SOL, o guitarrista e compositor da banda Café D’Alma e também autor de músicas para filmes, documentários e anúncios conta como surgiu a ideia. Excecionalmente este sábado às 15h vai tocar o hino…

 

A ditadura viral, por Nicholas Ratcliffe

O nervoso miudinho vai aumentando à medida que a hora se aproxima. Passo os dedos mais uma vez pelas harmonias e melodias e aqueço com os exercícios da praxe. Dúvidas, que nunca existiram, incomodam agora as certezas que até há poucas horas eram invioláveis, como a possibilidade de uma mais fácil digitação para aquele acorde mais falível. O barulho do público, já sentado, em breve será silenciado pelo apagar das luzes brancas do tecto, que darão lugar às luzes coloridas do palco. Mais uma olhadela para as horas que parecem não andar e que no palco farão os cem metros barreiras. Respiro fundo, procuro relaxar o corpo e dou um último gole de água. O aviso para se desligarem os telemóveis faz-se ouvir e é dado o sinal para entrar. Com a maior aparente calma do mundo piso o palco e abraço o momento que dá sentido à minha vida… Tocar guitarra.

Assim são os cinco minutos que antecedem a entrada de tantos músicos para o palco por esse mundo fora. Para aquilo para que vivem e se entregam. Para o público. Para a música. Para o que sabem ser a melhor forma de comunicar o que lhes vai na alma. E nada pode ou deve impedir um músico de tocar. Um pintor ou um escultor de expor as suas obras ou ninguém de fazer o que quer que seja. Seria, caso contrário, viver numa ditadura. Ou, como aprendemos recentemente, a ter um vírus por perto que nos algema e nos cala o que de mais valioso podemos ter. A liberdade!

Mas como lutar contra um ditador a quem não podemos fazer frente? Que é invisível e potencialmente violento. Que mata. Que não olha a meios. Que ignora política, religiões, géneros, raças e nacionalidades… Que nos fecha em casa e encerra fronteiras…

A resposta, caberá a cada um de nós encontrar…

Não há hoje palcos nem público. Por isso não há luzes nem técnicos de som. Logo, não há música nem espetáculos.

Ou estarei enganado? Poderei reinventar-me de alguma forma? Vou mesmo deixar que os tentáculos desta ditadura viral me estrangulem?

A resposta é não. Não deixarei que a clausura em que vivo me limite a liberdade de expressão e me impeça de, à minha maneira, comunicar com o mundo. Com quem me quiser ouvir e, quem sabe, com quem precisar de me ouvir. A música é, para muitos, uma forma de fugir para um mundo longe dos problemas e eu posso contribuir e quem sabe fazer a diferença. Fazer esquecer por uns minutos esta crise que nos atropelou a todos.

Com as devidas limitações e ajustes, posso em boa verdade tocar para um público. E tenho para o efeito e sem sair de casa tudo o que preciso comigo. Uma guitarra, um amplificador, palhetas, dedos e cordas. Da minha varanda improvisarei um palco e se dos meus vizinhos for merecedor terei o público. Serei também o meu próprio técnico de som e deixarei a iluminação a cargo da rede pública.

Por estes motivos e convicções dou por mim de novo com o nervoso miudinho, todos os sábados às 22h antes de ir para a minha varanda tocar para os vizinhos que me quiserem ouvir. E passo com os dedos pelas harmonias e melodias, aqueço com os exercícios da praxe e sigo todo aquele ritual habitual antes de entrar para o meu novo palco.

Sem contratos, sem cachets. Apenas um dia e hora marcados e a garantia de que toco uma e uma só música para um público que nunca sabe para o que vai mas que tem abraçado a iniciativa de uma forma muito carinhosa e entusiasta. E o retorno é, como se pode imaginar, priceless

Feliz 25 de Abril!

por Nicholas Ratcliffe
Professor de música