Dava de comer às girafas na sua propriedade perto de Nairobi; caçou crocodilos e bisontes; tomou chá com Karen Blixen, a autora de África Minha, na Dinamarca; viajou no iate de Onassis e serviu de ama-seca aos filhos de Jackie Kennedy; conviveu com os Rolling Stones e Andy Warhol (que lhe pareceu «um esquisitóide» quando o conheceu); travou amizade com Dalí, que insistia que ele era o seu irmão morto; foi pintado vezes sem conta por Francis Bacon; namorou com as modelos mais desejadas do mundo que apareciam nas capas da Elle e da Vogue… e quase foi morto por um elefante. Peter Beard era uma figura lendária, que se movimentava com o mesmo à-vontade junto da fauna da alta sociedade de Nova Iorque ou na savana de África, que visitou pela primeira vez em 1955 na companhia de um bisneto de Charles Darwin.
Bonito, talentoso, privilegiado e, ao mesmo tempo, fascinado pelas forças obscuras da natureza, dividiu a sua vida entre Manhattan, onde nasceu a 27 de janeiro de 1938, o Quénia, onde na década de 1960 adquiriu, graças à autorização do Presidente Kenyatta, 18 hectares «de terra inóspita» perto da fazenda de Karen Blixen, e a sua casa com vista para o Atlântico em Montauk, uma pequena povoação na ponta de Long Island (estado de Nova Iorque) cujos bares ostentam nas paredes fotografias e colagens suas. Diz-se que as usava para pagar contas que chegavam a ascender aos 20 mil dólares.
Foi em Montauk, numa zona arborizada, que o encontraram morto no passado domingo, quase um mês depois de a família ter comunicado o seu desaparecimento. Sofria de demência e já tinha tido um enfarte.
A Velha África de Blixen
Peter Hill Beard nasceu numa família em que confluíram duas grandes fortunas americanas – uma proveniente da ferrovia (o seu antepassado James J. Hill era tão célebre que aparece mencionado n’O Grande Gatsby como «um grande homem»), a outra proveniente do tabaco. O seu pai trabalhava em Wall Street, a mãe tinha sido campeã de patinagem artística.
Filho do meio, Beard estudou Belas Artes na Universidade de Yale, mas foi a paixão por África que verdadeiramente moldou o seu destino. Visitou o continente pela primeira vez quando tinha 17 anos, ainda antes de começar a licenciatura. Saindo da África do Sul, passou pela Zululândia, pelo Botsuana, pela Gorongosa (Moçambique), Madagáscar e Quénia. «Quase consegui que me matassem enquanto tentava fotografar um hipopótamo ferido, na Gorongosa», relatou numa entrevista de vida a Steven M. L. Aronson (Peter Beard, vol. II, Taschen). Regressou ao continente africano quando estava no primeiro ano de Yale. Na viagem, a bordo de um camarote luxuoso do Queen Mary, leu África Minha e ficou deslumbrado. Enviaria mais tarde à autora um exemplar do seu livro The End of the Game (1965) em que documentara o desaparecimento das manadas infindáveis de elefantes das planícies do Quénia. Blixen respondeu-lhe dizendo: «Poucas coisas me comoveram tão profundamente como o seu epitáfio, ou monumento, sobre a Velha África que era tão querida ao meu coração – o continente da sabedoria, dignidade e poesia profunda, igualmente expressa na natureza, nos animais selvagens e no homem».
Beard não se limitava a fazer fotografias, gostava de as enriquecer com a sua caligrafia, colagens, desenhos, conchas, algas secas, sangue, vísceras e outros detritos orgânicos. Um dia, no apartamento de uma amiga em Manhattan, conheceu Ava Gardner. «Acidentalmente», contou na entrevista a Aronson, «ela partiu o copo de vinho e cortou a mão, e eu saquei do meu diário e fiquei com sangue dela em duas páginas».
Esses diários estavam, juntamente com os livros de África que colecionava e outras preciosidades, num moinho que Beard tinha comprado num leilão e que mandara transportar para a sua propriedade. «Passámos dois anos a arranjar aquilo. O produto final era uma obra-prima». No inverno de 1977 uma explosão na caldeira de aquecimento provocou um incêndio que reduziu a cinzas todo o conteúdo do moinho.
Processo natural
Beard também fotografou para revistas de moda, retratando as modelos mais célebres, algumas delas suas namoradas, como se de belos animais selvagens se tratasse. Sobre Verushka, um dos ícones da moda daquela época, diria: «Era uma das minhas esculturas vivas favoritas».
Playboy incorrigível, teve três casamentos, o último dos quais com Nejma Khanum, filha de um juiz afegão, que conheceu num hotel em 1985. «Percebi imediatamente que era a única pessoa com quem eu podia estar casado». Em 1996 só por muito pouco não foi morto pela matriarca de uma manada de elefantes. «A certa altura até me agarrei a uma das pernas dianteiras, mas ela encostou-me ao formigueiro, espetou uma presa na minha coxa esquerda e usou a testa para me esmagar as costelas e a anca. Começou tudo a estalar e a partir-se». Garantia não temer a morte: «É maravilhoso que a morte seja um fim: qual é o problema disso? Temos muito tempo para viver; temos muito tempo para nos divertirmos […]. Não tenho medo nenhum de morrer – é um dos processos mais naturais que há».