Cidade, pandemia e crise…

Nestes tempos de modernidade tardia, estar morto não é normal nem aceitável. O homem vive na ficção da vida eterna e da juventude prometida.

«…o que for, quando for, é que será o que é».
Alberto Caeiro

Perante a pandemia da covid-19, o mundo encolhe a vida económica e reduz a vida social a um estado de clausura artificial, numa tentativa de impedir o contágio e evitar mortandades que pudessem levar a explosões de grande irracionalidade social. 

O medo da morte generalizada provoca mudanças radicais nos comportamentos e estilos de vida, esvazia cafés, bares, cinemas, teatros, centros comerciais, hotéis, escolas, etc. Pequenas, médias e grandes empresas fecham as portas e mandam para casa os seus operários, sem garantirem o direito ao protesto e à segurança social. O desemprego, a insegurança, crescem de forma exponencial. O homem doméstico substitui o homem público. Vivem-se tempos de clausura. 

Tudo é frágil e efémero. 

Num mundo cada vez mais imprevisível, são várias as vozes que nos falam de que a vida nas cidades não será como dantes. Mas esta ‘desconstrução’ da vida quotidiana é uma reação a uma crise pandémica, não é consequência de uma profunda transformação das superstruturas sociais. Glosando Nietzsche, não estamos a viver uma interrupção da historicidade e continuidade da vida moderna, mas a assistir a uma turbulência social com consequências na macroeconomia dos países capitalistas que fizeram do dogma neoliberal a sua fé.

Nestes tempos de modernidade tardia, estar morto não é normal nem aceitável. O homem vive na ficção da vida eterna e da juventude prometida. Sobre esse estado de alma, Baudrillard refere que a morte é hoje uma forma de delinquência, um desvio, uma anomalia impensável e inaceitável. Em tempos ditos normais, ocultamos os mortos como ocultamos os doentes e os velhos; julgamos esse duelo como uma patologia que se pode curar, reduzimos os rituais funerários a caricaturas abreviadas e degradamos o espaço doméstico e público da morte. Portanto, nada disto é novo ou consequência da pandemia: a sua genealogia já vem na passagem da sociedade moderna para uma modernidade tardia.

Estamos perante o regresso da higiene escatológica. A higienização exerce um controle sobre a nossa condição social. Lança o medo e o terror nas nossas cidades. Fazemos apelo à distância social, a uma radicalidade e excecionalidade enquanto situação-limite. 

A ‘pandemia’ covid-19 levou milhões de pessoas para um estado de reclusão ou de isolamento forçado como forma de evitar o contágio. Assiste-se ao aparecimento do ‘mundo da recusa’. Da recusa da vida em espaços públicos, recusa do trabalho em contacto com outros, recusa das interações familiares e sociais. As cidades fecharam-se dentro de uma concha, numa espécie de regresso à caverna. 

Mas quais serão os efeitos desta pandemia na cidade? Poderemos assistir a picos de resistência, de crise económica, de inflação, de queda do poder de compra, de desemprego e provavelmente ao regresso de grandes lutas sociais urbanas. O direito à cidade e a nova luta de classes contínua latente e justificável em nome de uma cidade justa. 

A pandemia remete-nos para a dimensão daquilo que Foucault chamava de «governabilidade», da relação existente entre a biopolítica e o poder normativo do Estado. A relação é cada vez mais estreita entre o político, o corpo, a saúde, a segurança, a higiene e os estilos de vida. 

Os estados de emergência não só limitaram as liberdades constitucionais como violaram a sacralidade corporal do Estado Democrático em nome de uma civilização higienizada.

Na política ‘covidocêntrica’, em que os profissionais de saúde se deificam em heroicismo para os mais agnósticos, numa luta imaculada contra a intangibilidade de um agente viral, quiçá ficcionado cientificamente. 

O urbanoide, na sua desconstrução de ritualidade, delega a gestão de incertezas ao sacerdócio médico de imaculação hipocrática como garante do bem público.

Nas cidades, as máscaras sociais substituem-se por máscaras associais de armaduras isolacionistas, como exercício de aprendizagem reativo defendido por Kübler-Ross em cinco etapas – negação, rejeição, negociação, depressão e, finalmente, aceitação –, aplicadas a situações de catástrofe nem sempre de forma sequencial e integral. Nesta pandemia, que resultou numa assimetria de trabalho voluntarioso e comprometido dos médicos na missão jurada de salvar vidas, e em não trabalho forçado da maioria de outras profissões, poderá conduzir a um apoliticismo de sobrevivência ou a uma monotonia sufocante. 

Strauss defende que os indivíduos ativos respondem criativamente aos acontecimentos com os quais se deparam, evocando-se assim questões morais e éticas, a par com o conceito de ator e ação – colocando-se a crítica no centro das indagações e levando à definição dos contornos políticos da ética e dos contornos éticos da política.

*Fernando Matos Rodrigues, antropólogo e investigador CICS.Nova_UM / Lahb, e Filipa Carneiro, médica cirurgiã 
(doutoranda em DRI)