Pedro Maria de Alvim: ‘As épocas de crise são propícias a que apareçam no mercado objetos excecionais’

Continuaremos a ver obras de arte a atingir valores estratosféricos? Há áreas mais imunes à desvalorização que outras? Pedro Maria Alvim, sócio da Cabral Moncada Leilões, explica como a pandemia poderá afetar o mercado.

 

Já é possível começar a medir o impacto que a pandemia vai ter no mercado da arte?

Estamos a viver algo que nunca foi vivido antes, nada sequer parecido. Este é um vírus que não conhece fronteiras, não conhece idades, raças, religiões ou classes sociais, toca a todos por igual. Não existindo antecedentes desta natureza e com esta dimensão, tudo o que podemos fazer é um exercício especulativo, nomeadamente através da comparação com o que aconteceu noutras crises, como a crise do subprime de 2008-2010, e a partir daí tentarmos refletir sobre o que aí vem. Normalmente, em situações de crise, o que se passa é que nem todas as consequências se fazem sentir de imediato ou da mesma maneira: algumas chegam com um ano ou dois de atraso, e na área dos leilões de arte por vezes em contraciclo. Foi assim em 2008-2010, e é natural que agora também demore tempo a sentir-se o impacto em toda a sua plenitude.

O negócio dos leilões terá de reinventar-se para se adaptar às circunstâncias depois da crise? Já estão a preparar-se para isso?
Ninguém estava preparado para o que aconteceu e ainda estamos a tentar perceber como podemos minimizar as consequências. Mas há uma coisa que mesmo as grandes leiloeiras internacionais já perceberam e estão a fazer, que é apostar nos leilões online. Aqui na leiloeira estamos a adaptar o nosso modelo de negócio para uma vertente mais digital. Como por agora não podemos fazer leilões nem exposições presenciais, e não saberemos quando poderemos voltar a fazê-lo – eventualmente em junho – estamos a focar-nos nos leilões online, que antes ocupavam um lugar mais secundário, embora fosse um setor que já vinha a registar um crescimento contínuo. Isso permite que nos mantenhamos em funcionamento neste período, e temos tido bons resultados. As pessoas, estando fechadas em suas casas, têm mais disponibilidade de tempo. E estão também desejosas de poder manter hábitos que tinham antes do confinamento. Nesse sentido ficamos satisfeitos por também contribuir para manter as coisas a funcionar dentro de alguma normalidade.

Os leilões online não são para peças mais comuns, de menor valor?
Tradicionalmente eram, de facto, reservados para as peças mais comuns, de menor valor. Mas essa tendência está a inverter-se muito rapidamente e isso não se deve propriamente à pandemia, que apenas a reforça. Cada vez mais os leilões online integram peças de alto valor, que até há bem pouco tempo estavam claramente reservadas para os leilões presenciais. A decisão de pelo menos uma grande leiloeira internacional (Sotheby’s), durante a presente pandemia, e com grande sucesso, de avançar já com leilões online em alternativa ao adiamento dos leilões presenciais previstos (como outras preferiram fazer) não deixa dúvidas sobre a evolução previsível. Os leilões online têm várias grandes vantagens em relação aos presenciais. A primeira é que não obrigando à presença física, na sala, do licitante, mas permitindo-lhe não obstante acompanhar e participar pessoalmente, em tempo real, na licitação de cada peça, anulam em grande medida as limitações que antes decorriam da distância geográfica. Quem esteja em Londres pode participar num leilão que esteja a decorrer em Lisboa; e vice-versa. Outra grande vantagem é a do alcance: os leilões online alcançam um número muito maior de pessoas, alargaram exponencialmente o mercado reduzido por natureza dos leilões presenciais. Com elas, um mercado tradicionalmente periférico, como o nosso, na prática deixou de o ser. As antigas discrepâncias entre os preços de cá e do mercado dito internacional esbateram-se: hoje temos um mercado que é global, em que os preços são tendencialmente comuns. Claro que certas áreas ou nichos que interessam aos colecionadores portugueses não têm procura lá fora. Se falarmos de pintura naturalista portuguesa do século XIX vende-se quase exclusivamente dentro de portas. O mesmo se pode dizer das obras de arte moderna e contemporânea de autores portugueses, mesmo consagrados: com poucas exceções têm também uma procura praticamente só interna. Mas há outras categorias, caso da porcelana chinesa de exportação, ou das peças de cross-culture – peças indo-portuguesas, sino-portuguesas, por exemplo – que têm procura e valores internacionais. O universo de potenciais compradores alarga-se extraordinariamente. Isso é bom para quem vende, porque sabe que chega a outros compradores e por isso vende melhor, mas quem compra também sabe que pagou um preço justo e, ao mesmo tempo, deixa de ter acesso só a um número restrito de objetos, passa a ter um leque de escolha muito mais vasto. O facto é que o número de compradores estrangeiros – mas também o dos vendedores estrangeiros, que nos enviam peças para as vendermos cá – continua a aumentar.

Diz-se que no futebol o tempo das transferências de milhões acabou e já vimos grandes clubes europeus, como a Juventus, a fazer cortes draconianos nos salários dos jogadores. O mercado da arte também movimenta muitos milhões. É expectável que deixemos de ver as obras de arte atingirem aqueles valores estratosféricos em leilão? 
Não creio que essa comparação com o mundo do futebol nos permita extrapolar grande coisa para a área dos leilões de arte. Os valores estratosféricos praticados no futebol são função das receitas estratosféricas geradas pelas multidões que seguem o futebol. Cessando bruscamente tais receitas não é de admirar que se façam cortes draconianos nos salários, é uma mera e elementar consequência. Os valores também estratosféricos de que de tempos a tempos se ouve falar no mercado internacional de arte (que não em Portugal…) assentam numa lógica totalmente diferente, mais próxima das leis da oferta e da procura. Quando falamos de obras de arte falamos de bens tangíveis. Uma peça única, no sentido de que que não há, ou não se conhece outra igual no mundo, vai necessariamente, pela sua raridade, ou pela sua qualidade, ou pela sua antiguidade ou até pelo seu significado, atingir valores muito altos, até porque não deixou de haver colecionadores e investidores com poder de compra. De facto, certas peças são tão invulgares e tão atrativas que, independentemente do momento em que aparecem no mercado, geram um interesse verdadeiramente global à sua volta e tendem a atingir um valor proporcional. Como já vimos noutras situações, as épocas de crise são propícias a que apareçam no mercado objetos excecionais. Esses têm sempre mercado: e há sempre compradores interessados e com capacidade para os comprar. Julgo que, nesse patamar, as coisas não irão mudar muito. Mas é óbvio que nestes períodos de crise a margem para a especulação diminui – o que é, apesar de tudo, uma vantagem. Se falarmos a outro nível, o das peças médias, parece-me uma inevitabilidade que, com a quebra da economia e dos rendimentos, os preços caiam. Por um lado, porque a crise que aí vem vai afetar muita gente, vai criar desemprego, e haverá necessariamente menos poder de compra. Por outro lado, porque é expectável que, pelas mesmas razões, a oferta aumente. Nós, na área dos leilões de antiguidades e obras de arte moderna e contemporânea, no seu sentido mais amplo, isto é, incluindo pratas e joias, peças de mobiliário e decoração, etc., etc., estamos muito associados a situações de natureza muito diversa, sendo cada vez maior o número de pedidos de avaliações de bens que recebemos, em razão de heranças e partilhas familiares, divórcios, liquidações de empresas e, por outro, situações de necessidade de liquidez. Portanto em períodos de crise acabamos por ter maior volume de atividade. Havendo essa maior oferta, é natural que acabe por se baixar os preços.

As alturas de prosperidade são boas para vender e as alturas de crise boas para comprar?
Às vezes há quem me pergunte: ‘O que devo comprar neste momento?’. Ora, isso depende de muitas coisas – mas logo para começar do gosto de quem compra, do que existe disponível no mercado, de tendências, etc. O facto de comprar alguma coisa barata não quer dizer que faça um bom investimento, porque depois pode continuar a valer o mesmo ou ainda menos. Pelo contrário, pode comprar caro mas se a peça for boa e tiver mercado depois acabará por valorizar. As coisas não são assim tão simples.

Como me disse há pouco, nestas épocas aparecem à venda peças excecionais. Isso representa uma oportunidade para as leiloeiras?
Nós, além de sermos intermediários qualificados – prestamos um serviço direto e especializado aos vendedores, por um lado, e aos compradores, por outro, a que corresponde uma comissão, repare que não podemos comprar nem ser donos de nada – prestamos também um importante serviço indireto ao mercado; os leilões de arte, promovendo e divulgando o património cultural, têm uma função na sociedade que é também a de cash converters. Nesse sentido funcionamos um pouco como a banca e estamos obrigados a uma credibilidade equivalente. As pessoas que têm certos bens em casa podem recorrer a nós em situações de necessidade. Entregam-nos um bem para o colocarmos no mercado e em troca recebem o que esse mercado pagar por ele. Isso permite muitas vezes realizar liquidez para fazer face a imprevistos ou a situações em que se perderam rendimentos e assim comportar as despesas do dia-a-dia. É aquela velha expressão portuguesa: ‘Vão-se os anéis, ficam os dedos’. Há peças que por vezes estão nas famílias há muitos anos ou mesmo há gerações, mas chega um momento em que por necessidade acabam por ter de as pôr no mercado. Como o dinheiro não desapareceu de repente, quando essas peças são colocadas no mercado, continua a haver pessoas com poder de compra interessadas e que pagam valores muito altos para as ter.

Imagino que já tenha visitado a Feira de Maastricht, que é uma das mais prestigiadas do meio da arte e antiguidades. Acha que a próxima edição terá as mesmas características da deste ano?
Fui algumas vezes à TEFAF mas sempre como visitante, como se vai a uma grande exposição ou um museu, não para comprar. É uma feira onde se reúne o melhor que existe no mercado da arte, as peças de maior qualidade, e que atrai anualmente uma grande multidão de visitantes, grandes colecionadores, incluindo naturalmente clientes nossos. A TEFAF conseguiu alcançar algo que antes era um exclusivo das grandes leiloeiras internacionais: atraindo a si os maiores peritos em cada área, conseguir atestar a autenticidade de cada peça com o máximo de credibilidade internacional. Isso assegura o alto grau de confiança de que dependem as aquisições não só dos grandes investidores e colecionadores particulares mas também dos grandes compradores institucionais – os grandes museus, as grandes instituições, fundações, universidades, etc.: entidades com dotações muito significativas para aquisições, que muitas vezes têm mesmo de ser efetivadas num determinado período. Essas dotações podem diminuir, mas não vão desaparecer de um dia para o outro. Agora, se me perguntar se a próxima feira vai ter menos expositores ou menos visitantes… É provável que não tenha tantos visitantes presenciais como os que costumava ter.

Há áreas que são mais imunes do que outras a períodos de crise?
Há naturalmente áreas que têm sido mais afetadas do que outras com a evolução das tendências e dos gostos e que serão provavelmente mais afetadas do que outras. É o caso paradigmático do mobiliário antigo e também da pintura clássica de qualidade média e de grandes dimensões. Vou dar-lhe um exemplo para que se perceba bem. Imagine um daqueles grandes móveis do séc. XIX, que os ingleses designam apropriadamente por brown furniture ou uma grande paisagem romântica com um castelo em ruínas ao luar. Hoje as pessoas, até em virtude dos preços do imobiliário, vivem em casas pequenas, com tetos baixos. Não têm espaço e não querem uma peça pesada, grande, escura. Sobretudo os casais jovens preferem interiores mais leves, com pouca coisa, móveis simples. Portanto esses móveis grandes acabam inevitavelmente por desvalorizar. Inversamente, em períodos de crise, as pessoas procuram compreensivelmente bens de pequenas dimensões que, pelas suas características, concentram um grande valor, são sempre transacionáveis e podem guardar e facilmente levar consigo para onde quer que seja. É o caso das joias. O ouro, aliás, constitui um ativo de refúgio e costuma valorizar nestes períodos, portanto a ourivesaria e joalharia são áreas em que as pessoas investem mais facilmente e que tendem a não perder valor.