Controlo de infeção e higiene das mãos. As orientações estão na ordem do dia no combate à pandemia mas há muito que são pilares da saúde pública – e um desafio no dia a dia, do quotidiano de crianças e adultos aos próprios serviços de saúde. O Dia Mundial da Higiene das Mãos assinala-se anualmente a 5 de maio e este ano é incontornável – nas últimas semanas (re)aprendemos que é suposto demorar 20 segundos para lavar bem as mãos, o tempo de cantar duas vezes os parabéns em inglês. E fazê-lo com frequência. Quem descobriu a importância de lavar as mãos para prevenir infeções? O momento eureka da saúde pública teve lugar nos idos de 1840 no Hospital Geral de Viena e o protagonista foi Ignaz Semmelweis, um jovem médico recém chegado à maternidade do hospital onde se enfrentava uma crise persistente: a morte de mães e bebés nos primeiros dias de vida com uma doença então por explicar.
De candidato a advogado a médico "cientista"
Ignaz Semmelweis, nascido em 1818 em Tabán, tinha começado estudos de Direito em 1837 na Universidade de Viena. “Interrompendo-os após ter presenciado uma exposição em uma aula de anatomia, que o levou a começar estudar Medicina, na mesma universidade. Depois de um ano, mudou-se para Peste (atual Budapeste), onde permaneceu durante dois anos. Estudou Medicina na Universidade de Peste e regressou a Viena dois anos depois, para concluir o curso, o que ocorreu em 1844”, recorda um artigo publicado em 2015 por dois investigadores brasileiros na revista “Filosofia e História da Biologia”.
Marcos Rodrigues da Silva e Aline de Moura Mattos recuperam a história da sua intervenção. Depois de concluir medicina, Semmelweis estava interessado em fazer carreira na anatomia patológica mas como não conseguiu lugar acabou por candidatar-se a uma vaga para médico assistente em obstetrícia e em 1846 começa a trabalhar na maternidade do Hospital de Viena.
“Quando chegou a Viena, havia duas divisões na maternidade. Ele trabalhava na Primeira Clínica Obstétrica (Primeira Divisão), onde eram instruídos os estudantes de Medicina. A mortalidade das parturientes entre maio e julho de 1846 foi de 12,23%. Em agosto, aumentou para 18,05%. Em setembro, sofreu um decréscimo, sendo 14%. Pode-se dizer que, em média, de cada seis mulheres que eram internadas, uma falecia”, escrevem os mesmos autores.
Semmelweis começou então a investigar a origem da febre puerperal, analisando as diferentes teorias que existiam na altura, como poder haver variações no aparecimento desta febre e na mortalidade ao longo do ano em virtude das condições atmosféricas que alteravam as grávidas. Outra a hipótese era a sobrelotação dos serviços.
Convencido de que a causa poderia estar dentro do hospital, explorou as diferenças entre os dois serviços, que tinham taxas de mortalidade distintas e também rotinas diferentes. E nenhuma pista parece ter ficado de fora. “Na Primeira Clínica as pacientes acometidas pela febre puerperal ficavam numa sala especial e recebiam a visita do padre. Este, acompanhado pelo sacristão que tocava um sino, passava antes pelos quartos onde ficavam as mulheres sadias. Foi sugerido que isso poderia aterrorizar as mulheres aumentando a incidência da doença. Semmelweis fez com que o padre mudasse seu itinerário, não mais passando no local em que se encontravam as parturientes sadias e que o sacristão não mais tocasse o sino. Como as mortes continuavam a acontecer, ele excluiu essa hipótese”, recordam os autores do artigo. Foram exploradas razões clínicas, mas um acontecimento um ano depois de começar o seu empreendimento em busca da causa da doença reforça a ideia de que se estaria perante um problema causado por um agente externo – e de uma maneira que facilmente poderia ser comum.
A morte de um colega
“Em 1847, Jacob Kolletschka, colega e amigo de Semmelweis, feriu-se com o bisturi de um estudante que realizava uma autópsia, falecendo depois de apresentar os mesmos sintomas observados nas vítimas de febre puerperal. Semmelweis percebeu a semelhança entre os sintomas da doença que havia levado seu colega à morte com o que havia presenciado em relação às mulheres que tinham dado à luz. Reconheceu que a causa da doença do amigo não foi a ferida em si, mas a contaminação pelo material cadavérico. Deduziu então que no caso das puérperas, a causa deveria ser a mesma que levara seu colega a óbito”, descrevem os autores.
A partir daqui, o médico começou a juntar peças: ao fazer a autópsia do colega, percebeu que as lesões eram consistentes com as das mulheres que morriam na maternidade e que o facto de haver matéria cadáverica nas mãos de médicos e estudantes que circulavam no hospital poderia estar ligada à doença, o que tinha custado a vida a Kolletschka. Numa das divisões, não se faziam dissecações de cadáveres, o que poderia explicar a menor mortalidade, mas ainda assim a circulação de médicos e parteiras entre as duas unidades fazia com que houvesse casos de febre puerperal em toda a unidade. A solução pareceu evidente ao médico húngaro: higiene das mãos. “Em maio de 1847, Semmelweis começou a utilizar uma solução de cloro. Nessa época, tinha-se conhecimento de que o cloro impedia a putrefação e eliminava o mau-cheiro. Posteriormente, utilizou o cloreto de cálcio, por ter um custo mais baixo. O cloreto de cálcio misturado com água era colocado em bacias em cujo fundo havia areia lavada. Tanto estudantes como professores, ao entrarem na clínica, deveriam lavar e esfregar as mãos nessa solução. Depois desse procedimento inicial, bastava lavar as mãos com água e sabão, após examinar cada paciente”, escrevem os mesmos autores, recuperando os dados sobre a quebra da mortalidade nos meses que se seguiram: “A mortalidade que em maio de 1847, era de 12%, em junho caiu para 2,4%. No mês seguinte passou para 1,2% e em agosto para 1,9%. Apesar disso, houve resistência às ideias de Semmelweis por parte do diretor do hospital e também dos estudantes”, assinalam.
Não ficava totalmente resolvida a explicação da doença, que continuou a manifestar-se, e os autores assinalam que o facto de o médico não ter feito publicações nem seguido os critérios usados à época fragilizaram a aceitação da sua teoria, mas o trabalho de Semmelweiz tem sido considerado ao longo das décadas como um dos marcos para a importância da higiene das mãos no controlo de infeção, que em si na altura era um conceito já de si novo. “Semmelweis teve mérito como médico, mas foi pouco hábil na defesa de suas concepções, fazendo muitos inimigos”, concluem os autores.
Semmelweis, que chegou a publicar as suas conclusões num livro traduzido para inglês nos anos 40 do século passado, foi demitido das suas funções, numa altura em que a medicina estava ainda a incorporar a teoria macrobiana das doenças – os trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch na década de 1860 seriam determinantes. "A minha doutrina existe para livrar as maternidades do seu horror, para preservar as mulheres para os seus maridos e as mães para os seus filhos", escreveu o médico húngaro.
“Semmelweis intrepretou a sua descoberta de uma forma que era inconsistente com a doutrina médica contemporânea e as suas ideias foram ridicularizadas e rejeitadas pelos seus colegas médicos. A cada ano, enquanto os médicos discutiam, milhares de mulheres morriam em muitas maternidades europeias”, descrevem os autores da biografia “Childbed Fever: A Scientific Biography of Ignaz Semmelweis”. “Aos 42 anos (tinha 47), Semmelweis morreu num asilo para pessoas dementes em Viena, depois de ter sido severamente agredido por guardas. No mesmo ano, um obstetra austríaco chamado Carl Mayrhofer publicou um ensaio em que argumentava que a febre puerperal era invariavelmente causada por microorganismo. Esta descoberta, em parte baseada no trabalho de Semmelweiz, também foi rejeitada por muitos proeminentes obstetras. No entanto, alguns médicos foram persuadidos pela evidência e aos poucos a verdade prevaleceu”.
De controverso a regra de ouro
Com o passar das décadas, as práticas e evidência da importância da higienização no controlo de infeção foi ganhando lastro. Logo em 1867, dois anos depois da morte de Semmelweis, o cirurgião escocês Joseph Lister, descrito como o homem que “esterilizou a cirurgia”, publica um artigo na revista médica Lancet em que é apontado como outro marco e recomenda procedimentos a seguir para evitar infeções na mesa de operação, como o uso de soluções antissépticas.
A Universidade de Medicina de Budapeste tem hoje o nome de Semmelweiz e em 2018, no 200º aniversário de nascimento do médico, a Universidade de Viena inaugurou uma estátua em homenagem ao “inventor” da higiene das mãos.
E, 150 anos depois, as recomendações são feitas em todo o mundo, com procedimentos instituídos também para melhorar as boas práticas de higienização dentro dos hospitais, onde o combate às infeções hospitalares continua a ser um desafio. Nos EUA, as primeiras normas foram publicadas nos anos 80. Em Portugal, a procupação levou na última década à criação do Programa Nacional de Prevenção e Controlo de Infeções e das Resistências aos Antimicrobianos, da Direção Geral da Saúde, que também assinala esta terça-feira o Dia Mundial da Higiene das Mãos. No último relatório do programa, referente a 2018, assinala-se o aumento das unidades que nos últimos anos passaram a monitorizar boas práticas de higiene das mãos, com melhorias no cumprimento das medidas de higiene nos diferentes contextos. Era na higiene das mãos antes do contacto com um doente que se registava mais margem para melhoria, com apenas 66% dos profissionais inquiridos a dizer que o faziam. Imediatamente depois do contacto com um doente, 82% reportavam cumprir as boas práticas.
Na comunidade, se o conselho para lavagem das mãos começa em pequeno, os hábitos que nas últimas semanas foram sendo reforçados variam muito. Uma sondagem da Gallup International, de 2015, concluiu que 85% dos portugueses lavavam as mãos com água e sabão depois de ir à casa de banho, uma das percentagens mais altas nos países abrangidos. Será mesmo assim? Não há sondagens mais recentes.
Nas celebarações deste Dia Mundial da Higiene das Mãos em pandemia, a Organização Mundial de Saúde pede que a medida seja uma prioridade global e propôs que a data seja assinalada com um aplauso global a enfermeiros, na linha da frente dos "cuidados limpos" aos doentes. As Nações Unidas estimam que todos os anos a lavagem das mãos poderia prevenir mais de um milhão de mortes por diarreia e infeções, em particular nos países mais pobres.