Primeiros dias de desconfinamento sem alarmes mas com Lisboa em contraciclo

Peritos defenderam cautela na análise da primeira etapa de desconfinamento: é cedo para balanços e os portugueses foram contidos. Segunda etapa de desconfinamento arranca com mais folga nos hospitais e com todos os setores a adaptarem-se às novas regras. 

Com doze dias de desconfinamento e sem sinais de alarme, não há alterações aos planos para a segunda etapa de reabertura do país. Os preparativos fazem-se até à última, com as orientações definitivas por setor a serem conhecidas em cima do acontecimento. Na reunião técnica do Infarmed que deu luz verde à segunda fase de desconfinamento, embora não haja ainda avaliações definitivas, o otimismo foi refreado pela cautela. Os casos confirmados aumentaram na região de Lisboa e Vale do Tejo nas últimas semanas. Por outro lado, 12 dias, o período disponível para análise desde o início do desconfinamento a 4 de maio, é um período curto para leituras conclusivas e nisso concordam peritos, Governo e partidos, com a prudência a falar mais alto. E os portugueses a responderem também com muita prudência o que pode baralhar a leitura: mesmo com a primeira ordem de soltura, a mobilidade continuou muito aquém do que se registava antes de ser decretado estado de emergência.

Manuel Carmo Gomes, epidemiologia e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, um dos peritos que tem trabalhado na modelação da epidemia para a Direção Geral da Saúde, diz ao SOL que todos estes fatores pesam na análise que pode ser feita neste momento. Não soaram campainhas de alarme e a situação continua a ser vigiada de perto, na expectativa de perceber a evolução dos casos nos próximos dias. Parece estar a correr bem, mas também o comportamento dos portugueses nestes primeiros dias foi ‘muito contido’, como resumiu Marcelo Rebelo de Sousa no final da reunião com especialistas. «Quando uma pessoa é infetada leva seis dias a ter sintomas e pode levar oito a nove dias a ser diagnosticada e o caso ser comunicado, o que significa que pode haver um atraso de 15 dias. Tendo em conta que esse período ainda não passou, não podemos dizer que estamos confiantes de que não haja problema mas até ao momento não há sinais que nos digam que não estamos a caminhar bem. E os sinais que temos, nomeadamente o alívio da pressão nos hospitais, sendo razoáveis, sustentam a decisão de continuar no caminho que foi traçado», diz Manuel Carmo Gomes.

A partir dos boletins da DGS é possível analisar como evoluíram os principais indicadores disponíveis nos balanços diários sobre a epidemia desde o passado 4 de maio, um período de 12 dias, e comparar com o que aconteceu nos 12 dias anteriores. O país passou esta semana a barreira dos 28 500 casos diagnosticados e de 4 de maio até ontem tinham sido diagnosticados 3059 novos casos, um número ligeiramente inferior ao que aconteceu nos 12 dias anteriores. A região de Lisboa e Vale do Tejo surge em contraciclo e tem reportado diariamente o maior número de novos casos, mas nos briefings diários a Direção Geral da Saúde tem apontado fatores que contribuem para maior número de diagnósticos a Sul, nomeadamente os rastreios em lares, que foram concluídos mais cedo na região Norte.  

Os surtos mantêm-se como um dos fatores de preocupação e depois de na semana passada terem soado os alarmes com um cluster de casos na Avipronto, na Azambuja, nos últimos dias os receios regressaram com a confirmação de sete casos entre funcionários do entreposto da SONAE na mesma zona. A empresa garante, no entanto, que implementou há dois meses um plano de contingência para garantir que o nível de risco de propagação entre colegas é ‘muito baixo’. Os horários de entrada são desfasados e desde 24 de março que é feita a verificação de temperatura a todos os colaboradores, prestadores de serviço e de trabalho temporário antes de darem entrada em qualquer instalação dos entrepostos, referiu a empresa, sem explicar como foram detetados os casos. 

Se as precauções são suficientes, só o balanço dos próximos dias o dirá. E o mesmo em todos os setores que reabrem, do comércio às escolas e aos lares, que esta segunda-feira vão também retomar visitas com medidas apertadas que incluem marcação prévia e registo de todas as entradas. Em caso de surtos ativos, as visitas poderão ser adiadas, disse a diretora-geral da Saúde. A estratégia é a da responsabilização dos diferentes setores pelo cumprimento das orientações.

SNS com mais folga,  mas alívio está mais lento
O Rt nacional, o indicador que mede a propagação efetiva do vírus, situava-se esta sexta-feira em 0,97, revelou Graça Freitas, o que significa que Portugal se mantém na fronteira entre uma epidemia com tendência estável e uma epidemia com tendência decrescente – a maior preocupação surge acima de 1, quando um doente infetado dá em média origem a mais de um contágio. Graça Freitas adiantou que tendo estes indicadores em conta, é expectável que o país registe diariamente 200 a 300 novos casos. Ao contrário de países como Espanha ou Alemanha, o Ministério da Saúde não publica diariamente dados sobre a evolução do R. Comparando-se com esses países, ou mesmo com França ou Suécia, os últimos dados conhecidos mostram uma folga  menor do que a destes países, onde o R0 se situa entre 0,7 e 0,8, mas já o era a 4 de maio e os peritos que o SOL tem ouvido ao longo das últimas semanas defendem que importa perceber a distribuição dos casos e se resultam de transmissão comunitária sem que seja possível apurar uma ligação ou de surtos. O último balanço feito pela ministra da Saúde, no passado domingo, apontava para o segundo cenário, embora não haja dados para todos os casos: na primeira semana de maio, o que já incluiu alguns dias de desconfinamento, dos casos com historial epidemiológico conhecido (46% do total), em 32% a infeção foi contraída num lar, em 32% em pessoas a habitar o mesmo local, 19% no trabalho e 7% em ambiente social. Registavam-se ainda 4% de profissionais a contrair a doença em residências para idosos e 3% em ambiente de saúde. 

Se é expectável que o número de contágios possa subir com o desconfinamento, a perspetiva é que as medidas de distanciamento e higiene possam funcionar como travão ao vírus, ao mesmo tempo que se mantém a vigilância sobre a capacidade de resposta do SNS. Esta semana, o hospital de campanha no Porto foi desativado, depois dos hospitais de S. João e Santo António terem recuperado capacidade de internamento. A estrutura no Pavilhão Rosa Mota, onde estiveram internados 27 doentes, não será já desmontada, ficando de prevenção.

O acompanhamento dos indicadores de pressão sobre o SNS é um dos trabalhos liderados por Manuel Carmo Gomes. O epidemiologista explicou ao SOL que também aqui não houve até ao momento sinais de alarme, com os hospitais a recuperar progressivamente a capacidade de resposta – o número de doentes internados era ontem o mais baixo desde o final de março. E o SNS agora a remarcar consultas, cirurgias e exames, depois da suspensão da atividade a meio de março. Na análise do SOL, comparando com o período de 12 dias anterior ao desconfinamento, percebe-se que a redução nos internamentos e ocupação de UCI foi maior antes antes de 4 de maio do que nas últimas duas semanas. Desde 4 de maio há uma redução de 17% nos doentes internados, mas de 23 de abril a 4 de maio a redução tinha sido de 26%. O epidemiologista admite alguma desaceleração mas sublinha que o essencial é manter-se a tendência e verificar-se  a evolução dos novos internamentos diários e da ocupação de cuidados intensivos, onde até aqui a tendência tem sido decrescente. Neste momento, com menos de metade da ocupação de cuidados intensivos a ser utilizada, o investigador sublinha que existe capacidade de resposta no SNS e o trabalho da equipa é modelar a situação ao longo das semanas, para que possam fazer alertas caso se preveja que se vai exceder a capacidade nacional e se pode ser excedido o pico de 1300 doentes internados que se verificou em abril. «No dia em que começarmos a ver que a ocupação de cuidados intensivos em vez de estar a descer está a subir e começa a subir consistentemente, aí temos de ficar alerta», explica. «A partir dos internamentos, que habitualmente são 12% dos novos casos, o que fazemos é uma estimativa de quantos doentes vão precisar de cuidados intensivos e por quanto tempo. É a principal preocupação. Portugal tem 21 mil camas hospitalares além das que podem ser ativadas nos hospitais de campanha, isto para uma grande panóplia de doenças mas têm alguma elasticidade. Se o sistema quebrar, quebra nos cuidados intensivos». Sem uma segunda onda à vista mas sublinhando a prudência que é preciso ter nesta fase, Manuel Carmo Gomes diz que a estratégia de reabrir faseadamente, com novas rotinas e cuidados parece estar a dar resultado e a expectativa é perceber como evolui a epidemia nas próximas semanas. E como evoluem os cuidados da população. «Sabemos que é cedo para fazer balanços mas que ao mesmo tempo o que nos dizem os dados é que as pessoas não desconfinaram assim tanto. Como diz um colega meu, quase que é preciso uma grua para as tirar de casa. Com o tempo vão ganhando confiança. Espero que daqui a 15 dias, um mês, não se esqueçam de que é preciso continuar a ter cuidado, não está nada ganho».  

O que aconteceu desde o desconfinamento e como compara com os 12 dias anteriores:

 

Novos casos confirmados no país:

De 23 de abril a 4 de maio: 3171 (+14%)

De 4 de maio a 15 de maio 3059 (+12%)
 
 
Novos casos confirmados na região norte: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 1759 (+13%)
 
De 4 de maio a 15 de maio 1073 (+7%)
 
 
Novos casos confirmados em Lisboa e Vale do Tejo: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 942  (+18%)
 
De 4 de maio a 15 de maio 1815 (+29,5%)
 
 
Novos casos confirmados na região centro:
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 394 (+13%)
 
De 4 de maio a 15 de maio120 (+3%)
 
 
Novos casos confirmados no Alentejo: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 37 (+20%)
 
De 4 de maio a 15 de maio22 (+10%)
 
 
Novos casos confirmados no Algarve: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 15 (+5%)
 
De 4 de maio a 15 de maio22 (+7%)
 
 
Internados: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: -282 (-26%)
 
De 4 de maio a 15 de maio  -140 (-17%)
 
 
Em Unidades de Cuidados Intensivos: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: -61 (-30%)
 
De 4 de maio a 15 de maio-31 (-21%)
 
 
Recuperados: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 511 (+42%)
 
De 4 de maio a 15 de maio1616 (+94%)
 
 
Óbitos: 
 
 
De 23 de abril a 4 de maio: 243 (+30%)
 
De 4 de maio a 15 de maio 127 (+12%)