O sonho europeu e a Mamma Erasmus

Se acreditarmos que o mistério de terem sido poupadas cidades universitárias aos terríveis bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial esteve na incapacidade dos pilotos destruírem cidades onde tinham estudado, podemos afirmar que o Erasmus é, hoje, o maior e mais eficiente exército de paz que a Europa poderia alguma vez sonhar construir. 

No dia da Europa, 9 de maio, multiplicaram-se afirmações de solidariedade entre nações. A contrastar com a clareza destas palavras, esteve a decisão do Tribunal Constitucional Alemão de 5 de maio, colocando dúvidas sobre a compra de dívidas públicas pelo Banco Central Europeu. 

Vamos vivendo, de sobressalto em sobressalto, na esperança que os desafios que enfrentamos hoje, entre a pandemia e o aumento do desemprego e da fome, não destruam o sonho materializado na abertura da Carta dos Direitos Fundamentais da União: «Os povos da Europa, estabelecendo entre si uma união cada vez mais estreita, decidiram partilhar um futuro de paz, assente em valores comuns». 

As palavras dos pais fundadores podem trazer inspiração, mas é o trabalho de uma das suas mais significativas mães, a Professora Sofia Corrari, que nos faz acreditar. Sofia Corrari inventou o programa Erasmus e é mais conhecida por ‘Mamma Erasmus’. 

Sofia Corrari era jovem quando regressou para Itália depois de um mestrado concluído em Direito Comparado na prestigiada Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Pediu a equivalência ao grau, mas a Universidade de Roma não aceitou e mandou-a estudar. Estudar nunca tinha sido um castigo para Sofia, brilhante aluna e movida por curiosidade ilimitada. Assim, estudou e integrou a carreira académica, seguindo todas as exigências que lhe pediam. 
Memórias de ‘pura raiva’, gerada pela injustiça de não lhe contabilizarem uma experiência que, para Sofia, fora determinante para o seu crescimento como pessoa, mobilizaram-na para, em 1969, iniciar uma longa missão: criar, no seio da Europa, um programa de intercâmbio universitário. Seguiram-se 17 anos de luta, até, em 1987, o programa Erasmus ganhar corpo. 

Até 2020 prevê-se que o programa envolva mais de 5 milhões de alunos, ligando mais de 4000 instituições, cerca de 90 % das instituições universitárias europeias. É um programa de imersão na cultura do outro que ensina muito mais do que conhecimento académico. Ao aprender outros hábitos e outras línguas, constrói-se pensamento comparado e crítico. Aprende-se a identificar como diferentes olhares conseguem partilhar valores comuns de dignidade humana. Entende-se que é mesmo porque nos permitimos discordar que estamos ‘unidos na diversidade’. Consolida-se, pelo hábito da cultura do outro, o sonho europeu. 

Do Erasmus ficam ainda os laços humanos que se criam entre pessoas de diferentes nações, laços de amizade, laços de casamento, laços que se levam para a vida. Se acreditarmos que o mistério de terem sido poupadas cidades universitárias aos terríveis bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial esteve na incapacidade dos pilotos destruírem cidades onde tinham estudado, podemos afirmar que o Erasmus é, hoje, o maior e mais eficiente exército de paz que a Europa poderia alguma vez sonhar construir. 

Almada Negreiros diz que «quando eu nasci, as frases que hão de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade». O trabalho da Professora Sofia Corrari lembra-nos o impacto que uma pessoa consegue alcançar, além palavras. À medida que os discursos mais fáceis encontram conforto no cinismo e no ódio, que cada um dos milhões da experiência Eramus permaneça uma vela acesa de esperança na União, e que existam muitas mais pessoas que, como a Professora Sofia Corrari, longe dos holofotes, deem corpo às mudanças que a Europa precisa, pela prosperidade do sonho europeu.