As afirmações também se devem provar

Quem se pode esquecer de ver o Papa à Janela, visivelmente triste e zangado, quando o mundo caminhava para uma guerra com o Iraque? Quem se poderá esquecer dos gestos de carinho e de amor? Quem se poderá esquecer de tudo o que ele fez por nós? Isto é uma coisa estranha, principalmente, porque quinze…

Esta semana celebrámos o centenário do nascimento de João Paulo II, Papa e Santo, canonizado por Francisco. Este foi o Papa que meteu em prática as determinações do Concílio Vaticano II, que procurou os jovens pelas Jornadas Mundiais da Juventude, enfrentou guerras e dissensões entre os povos e outras dentro da Igreja Católica. 

Os seus 28 anos de pontificado à frente da Igreja trouxeram muitos amigos, mas também muitos inimigos. Sem dúvida, o funeral de João Paulo II, em 2005, foi o espelho da sua vida: uma multidão que não se conseguia contar – alguns estimam mais de cinco milhões.

Não há país que não tenha uma memória da visita deste Papa. Quem não se lembra do hino que cantávamos em 1991, quando chegava ao Estádio do Restelo: «Quem é o homem que diz as razões da nossa esperança, ele vem como um canto anunciando o mundo unido». Eu estava lá e ficou-me gravado na memória. Na altura tinha quinze anos. Era um miúdo. Mas nunca mais esqueci.

A partir daí, nas minhas viagens e nos meus contactos, não parei de me encontrar com gente cuja vida foi tocada por João Paulo II. Lembro-me de ter estado na Croácia, em 2006. Fiquei na casa de uma família com um filho. Eles eram católicos e tinha na altura 32 anos. Ele tinha estado na tropa aquando da guerra e lembro-me de ele me ter dito: a guerra parou para receber o Papa.

Em Angola, está-me fixado na memória as palavras de João Paulo II, depois de terminada a guerra civil que tinha assolado o país: «Que acabe definitivamente para ti querida Angola os dias da tua provação».

Quem se pode esquecer de ver o Papa à Janela, visivelmente triste e zangado, quando o mundo caminhava para uma guerra com o Iraque? Quem se poderá esquecer dos gestos de carinho e de amor? Quem se poderá esquecer de tudo o que ele fez por nós?

Isto é uma coisa estranha, principalmente, porque quinze anos depois da sua morte, a única coisa que vem ao domínio público são os casos de pedofilia que ele teve de gerir no final do seu pontificado. 

Abri a internet e fui à procura do que se dizia sobre este centenário. É vergonhoso! Os títulos das notícias são quase todos iguais. Todos falam da pedofilia. Para rebentar com os festejos que pudessem vir a ferro e fogo, um realizador polaco publica no YouTube um filme documentário sobre dois irmãos que acusam um padre de ter cometido atos de pedofilia, o que obrigou o primaz da Polónia a pedir ao Santo Padre uma investigação. 

O mundo mudou muito, mesmo. Quando em 1993 entrei para o seminário, não havia padre que não tivesse a fama de andar com uma mulher. Aliás, esse era o problema de imagem que tinha a minha família: ir para padre e depois inventarem histórias sobre mim. É o fantasma que nos atormenta a todos. Mas é curioso como a narrativa mudou. Hoje o grande fantasma não são as mulheres, mas a pedofilia. 

Os homens da igreja não estão inocentes neste capítulo e geriram mal esta pasta. Lembro-me que João Paulo II, em Toronto, diante de quase um milhão de jovens, na Jornada Mundial de 2002, depois do caso Spotlight, dizia: «O dano que alguns presbíteros e religiosos causam aos jovens e às pessoas vulneráveis enche-nos de um profundo sentido de tristeza e de vergonha».  Nesse dia estava a concelebrar com o Papa e lembro-me de ver alguns padres chorar ao meu lado.

No meio de todas estas festas, Miguel Sousa Tavares, no seu habitual comentário fez uma afirmação, no meio de muitos elogios e acusações: «Hoje não há nenhuma dúvida de que ele [João Paulo II] sabia da pedofilia na Igreja, sabia da ocultação dos casos e abafou-os todos». Não que premissas serviram para suportar estas afirmações, mas seria interessante que as tornasse públicas.