Quatro irmãos, quatro países. Filipa Moreira da Cruz: Novo mundo

Bem-vindo à ‘nova normalidade’! Quer ir dar um mergulho no mar? Não há problema! Basta tirar a senha e esperar pela sua vez! Se preferir, fazer um piquenique no parque ou no jardim do bairro, não há nada mais simples! Coma, beba, converse e vigie as crianças de pé porque os bancos são apenas decorativos…

Bem-vindo à ‘nova normalidade’! Quer ir dar um mergulho no mar? Não há problema! Basta tirar a senha e esperar pela sua vez! Se preferir, fazer um piquenique no parque ou no jardim do bairro, não há nada mais simples! Coma, beba, converse e vigie as crianças de pé porque os bancos são apenas decorativos e a relva está reservada. Se necessitar comprar um par de óculos não hesite em levar uma máscara da mesma cor do modelo pretendido. Mas se não conseguir, não se preocupe. Deite fora a sua (pode ser mesmo na sarjeta) e vá buscar outra que faça conjunto. Errar é humano e vale tudo para salvaguardar a aparência. E nas férias, como vai ser? Calma, está tudo controlado! Road trips é o que está a dar! As reservas de petróleo estão à nossa espera e as autoestradas também. Para os mais apressados, há aviões com tripulação e passageiros mascarados e uma rica quarentena no país de chegada. E que tal um café e um bolinho no bistrot ao lado de casa servidos no plástico tão amigo do ambiente? Feito!

2020 começou mal e, por este andar, vai terminar em apoteose. A História tem tendência a repetir-se, mesmo que nada seja exatamente como antes. Séculos depois da Peste Negra, 100 anos após a gripe espanhola e passadas duas grandes guerras o ser humano vive aterrorizado com a ideia de uma 3.ª Guerra Mundial. Entretanto, foi um vírus com várias coroas que virou o mundo do avesso. Parece que no velho continente o pior já passou e a Europa pode, finalmente, celebrar o desconfinamento com pompa e circunstância. E até o Verão antecipado vem ajudar à festa. Uns saem à rua destemidos, a falar alto e de peito erguido, enquanto outros caminham nas pontas dos pés e limitam-se a sussurrar, com medo de despertar a cólera do monstro.

São poucos os que admitem que quase nada será como antes. É mais fácil viver o presente. Até porque tudo pode mudar de um momento para o outro. Escasseiam os que reconhecem que o antigo ‘normal’ já quase não existe. Resistimos a equacionar outro modo de vida porque o desconhecido assusta-nos e obriga-nos a sair da nossa zona de conforto. Preferimos acreditar que o mundo está à nossa espera tal como era, intacto. É importante confiar que vai correr tudo bem. Às vezes um placebo é mais eficaz que um antibiótico. Basta crer. A fé move montanhas.

A pandemia deixou-nos órfãos de afetos, de abraços, de aconchego. Os laços intergeracionais foram bruscamente interrompidos. As crianças ficaram sem escola, sem amigos, sem professores. E pior ainda, sem brincadeira nem recreio. Os doentes crónicos tornaram-se invisíveis e ir ao dentista passou a ser missão (quase) impossível. Já são muitas as pessoas que perderam o emprego e outras serão forçadas a mudar de rumo. Certas profissões deixarão de existir e surgirão novas. O futuro é agora e tudo é efémero.

A vida continua, mas as feridas mais dolorosas permanecem invisíveis e vão demorar tempo a cicatrizar. É mais fácil pedir ajuda para comer que admitir que o nosso espírito está debilitado. Os nervos estão à flor da pele, a paz interior foi abalada e este vírus é o álibi perfeito para todos os males da sociedade contemporânea. A partir de agora, é tudo culpa da covid. Para alguns, dar a volta por cima exige um esforço demasiado elevado. E o mau da fita está mesmo à mão de semear.

Recomeçar, renovar, reinventar, reciclar. A mudança não me assusta. Sou nómada por natureza. E otimista também. Já vivi em tantas casas que perdi a conta. Saint-Malo é apenas mais uma passagem. A cité corsaire, em tempos habitada por piratas reconhecidos pelo próprio rei, é única e autêntica. O seu clima rude forjou personalidades fortes de marinheiros e navegadores. Daqui saiu a primeira expedição à Terra Nova (Canadá) liderada por Jacques Cartier. Nesta cidade, banhada pela Mancha e onde há quase mais praias que pessoas, aprendi a ouvir o silêncio e a seguir o vento que vem, muitas vezes, do Mont Saint-Michel, esse lugar mágico. Deixei de levar a vida tão a sério há algum tempo e planos só mesmo a curto prazo. Este vírus veio dar-me razão. A vida é feita de imprevistos. E ainda bem. Se for para ficar, ficaremos. Se o nosso destino for soltar amarras e partir, partiremos. Não é por acaso que o meu melhor amigo, que é alemão, me chama ‘a malinha pronta’.