Reinterpretar a Habitação: a experiência do confinamento

A ideia de habitação, expressa enquanto um direito e bem comum de todos/as, não se esgota no seu propósito mais óbvio e imediato, de abrigo. Pelo contrário, ela participa no dia-a-dia de cada morador, na definição do seu caracter, nas suas várias dimensões físicas, psicológicas e sociais. A habitação é o espaço de expressão dos…

A ideia de habitação, expressa enquanto um direito e bem comum de todos/as, não se esgota no seu propósito mais óbvio e imediato, de abrigo. Pelo contrário, ela participa no dia-a-dia de cada morador, na definição do seu caracter, nas suas várias dimensões físicas, psicológicas e sociais. A habitação é o espaço de expressão dos indivíduos, é nela que tudo o que se vê, tudo o que se faz e tudo o que se diz ganha um sentido e a distinção entre o essencial e o acessório se torna cada vez mais premente.

Nesse sentido, a actual pandemia leva-nos a reflectir sobre a importância da habitação e do papel fundamental do arquitecto, enquanto garantia de criação de espaços ordenados de forma harmónica, organizados num sistema que enquadre a história, a técnica, a ética e a estética.

A importância crescente da era digital é consequência do processo tecnológico, que movimenta populações, modifica estruturas sociais e transforma o modo de habitar, de socializar e de trabalhar dos homens sobre a Terra.

Quando, com a ascensão das máquinas, com a inteligência artificial, se antevê a redução de espaço físico de habitação por pessoa.

Quando se acumulam funções distintas associadas à habitação, outrora separadas fisicamente, no mínimo de espaço possível.

Quando se promovem os espaços de trabalho amplos, sem qualquer divisória espacial, reduzindo o respectivo espaço físico.

Enquanto confinados ao espaço habitacional, a que fomos “obrigados” nos últimos meses, muitos se depararam com a insuficiência do espaço habitável, dado o número de pessoas de cada família.

A salubridade passou a ser um tema actual, chamando a atenção para a devida ventilação e luminosidade dos espaços, para a necessidade de mais que uma instalação sanitária, para a adequada dimensão dos espaços segundo a lotação, para a necessidade dos espaços exteriores.

A defesa dos espaços salubres na habitação e no trabalho remonta à Primeira República, justamente para protecção contra epidemias e combate a doenças infecciosas. Considera(va)-se que a falta de ventilação contribuía para a propagação de vírus e bactérias causadores de doenças, como foi o exemplo da tuberculose. Em 1951, com o Regulamento Geral de Edificações Urbanas impõem-se normas técnicas de salubridade e segurança nas edificações. 

No entanto, à medida que o tempo passa e o mundo se modifica, os objectos variam e o ponto de vista desloca-se. A pouco e pouco, por via da evolução das condições sanitárias no país e da promoção de um estilo de vida mais cosmopolita, foram surgindo no mercado imobiliário “sub-produtos” que se desviaram do padrão de sentido da habitação.

No centro desta época com características muito particulares, a importância do espaço tornou-se, mais do que um factor de maximizar o lucro (tendo qualquer indivíduo que pagar pelo espaço, seja próprio ou arrendado), uma necessidade. Ainda mais quando esta nova realidade nos diz que a habitação não é só o espaço da casa, da intimidade, do gesto do individuo e da família, mas é também o espaço de trabalho e da educação, partilhado via “zoom” com conhecidos e desconhecidos.

Esta consciência, sobre a importância da habitação no mundo da revolução tecnológica, conduz a várias exigências envolvendo a forma de protecção das pessoas e respectivas necessidades espaciais, face às múltiplas solicitações que nos foram (e serão) impostas, visível na crescente predisposição para o aumento de funções, que necessariamente impõe um maior rigor no conhecimento do uso espacial.

Novos hábitos e necessidades implicarão um reajustamento na maneira de viver, traduzida na criação de contextos que, na máxima segurança possível, permitam contribuir para uma regeneração da circunstância existente, preparada para resistir melhor ao futuro, com base numa estratégia de especialização, de arquitectura, inspirada no sentir a comunidade a que se dirige e sobre a qual produz efeitos.

Esta pandemia antecipa a necessidade urgente de reinterpretar a Habitação.

 

Cláudia Costa Santos, arquitecta

Presidente do Conselho Directivo Regional Norte da Ordem dos Arquitectos

* Artigo escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico