A alta tensão sino-americana

Já antes da pandemia, as relações Estados Unidos – República Popular da China estavam tensas, como é natural e sempre acontece quando dois poderes disputam a hegemonia mundial. Mesmo de forma e conteúdo não militares, isto é, no plano da economia.

Esta “guerra fria” sino-americana tem-se passado, sobretudo, no campo da competição científico-tecnológica e económica. Os Estados Unidos de Trump pareciam desinteressados de qualquer apostolado pró-democrático, como aconteceu no final da Guerra Fria ,e com George W. Bush para justificar a invasão do Iraque e derrubar a ditadura de Sadam Hussein. Por seu lado,  Pequim também não parecia há muito tempo interessada em exportar o comunismo, o seu modelo político de partido único e Estado policial, mas sim em aparecer como um país dedicado aos investimentos, aos negócios, às aquisições económicas pacíficas; continuava a ser uma nação industrial que vendia os seus produtos ao resto do mundo e que, com as mais valias das exportações, ia acumulando capitais que ia investindo na Europa, na África ou nas Américas.

Ou seja, nem Washington parecia muito interessado em espalhar as instituições da democracia multipartidária, nem Pequim em exportar o seu sistema de partido único. A competição e rivalidade pareciam situar-se apenas no campo do desafio e da competição económico-financeira.

Isto começou a mudar com Xi Jinping e com Trump, cada um a seu modo, políticos nacionalistas que proclamam bem alto terem como objetivo principal os interesses nacionais dos respectivos países. Para além disso, ambos têm personalidades fortes, autoritárias, Trump explodindo por vezes em afirmações politicamente incorrectas que o tornam objecto da fúria da comunidade jornalística e de uma massa de políticos e eleitores norte-americanos, cujo objectivo parece ser evitar a sua reeleição.

Xi Jinping, por sua vez, – primeiro discretamente, agora muito mais abertamente – foi alargando o seu poder pessoal dentro do PCC, sendo, depois de Mao e de Deng Xiaoping, o líder mais poderoso, dentro de uma estrutura que ainda é, teoricamente, colegial.

A Covid 19 agravou esta rivalidade a outros planos: ambos os contendores se acusavam mutuamente de coisas gravíssimas, isto é, da causa do próprio vírus. Se Trump, desde o princípio, insiste no “vírus chinês”, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, veio publicamente avançar uma especialmente agressiva e infundada “teoria da conspiração”, de que o vírus teria sido trazido para a China por militares americanos. Na escalada, quer Trump, quer Mike Pompeo, vieram subscrever a tese, formulada por vários especialistas, de que o vírus viria de um laboratório chinês.

Isto em cima de dois anos de guerra comercial que deixaram as suas marcas de um lado e de outro. Ambos os protagonistas, Estados Unidos e China, têm governantes que defendem claramente os interesses nacionais e até formas de nacionalismo económico. Só que, para Washington e Trump, esses interesses passam por investir e reinvestir na indústria e no mercado americano – que é grande – enquanto para Pequim o interesse económico nacional está, pelo contrário, em prosseguir com a internacionalização através das famosas Rotas da Seda.

Quer a China, quer a União Europeia têm, cada uma, mais de um terço do comércio internacional; os Estados Unidos apenas 14%.

A União Europeia tem uma balança comercial com a China altamente deficitária. Em 2019 importou mercadorias no valor de 362 biliões de Euros e exportou 198 biliões. Dos 27 países da UE, só três – a Alemanha, a Irlanda e a Finlândia – têm balanças comerciais positivas com Pequim. Portugal, com 604 milhões de importações, tem um saldo negativo de 2.349 milhões.

Será que a pandemia é capaz de alterar esta situação? Se por um lado, por razões e interesses comerciais – e pela posição que as empresas chinesas tomaram em muitos países europeus,  até pela compra à China de materiais ligados à saúde, como ventiladores e máscaras – essa dependência aumentou,  a verdade é que a questão das origens da Covid 19 e o reforço das características anti-democráticas na RPC tornam difícil compatibilizar com os princípios proclamados e defendidos por Bruxelas. E, embora retoricamente disfarçado nas declarações oficiais, sente-se um espírito crítico a nível da opinião pública, dos media e dos próprios governos europeus em relação a uma evolução mais agressiva das políticas de interesses e extremos de Pequim: maior repressão em Hong Kong e em relação a minorias étnicas e religiosas; tensão nas fronteiras com a Índia nos Himalaias; reforço rápido (também a coberto da pandemia) dos controlos políticos e policiais no interior do país e do partido. E uma maior personalização do poder de Xi Jinping.

Neste sentido, apesar da hostilidade a Trump dos media europeus e norte-americanos, e de algum isolamento que ele trouxe aos Estados Unidos, os aspectos civilizacionais “atlânticos” poderão, na hora da escolha, ter o seu peso na decisão europeia.

Até porque os Democratas americanos também se mostram, nesta questão, tão críticos da China e das culpas do Governo de Pequim na ocultação da pandemia, como os Republicanos.