A louca corrida à vacina da covid-19

A luta por acesso a uma futura vacina arrisca ser um pandemónio. E podem faltar componentes básicos, como frascos, seringas e adjuvantes.

A corrida a uma vacina para a covid-19 está a aquecer, com vários candidatas a entrarem na última fase de testes clínicos. Por entre avanços científicos promissores, a uma velocidade sem precedentes, já começam a fervilhar tensões geopolíticas, que terão um papel fundamental na discussão de quem tem acesso à vacina e quando. Mas o pior poderá ser daqui a uns meses, na primeira metade de 2021, quando se prevê que sejam aprovadas as primeiras vacinas.

«No início, porque o abastecimento será limitado, haverá problemas de alocação», avisa ao SOL Yadav Prashant, investigador especializado em cadeias de abastecimento médico, do Centro para o Desenvolvimento Global, em Washington. «Os governos que fizeram acordos com os fabricantes terão abastecimento garantido. Mas fica a questão, os governos de países que não o fizeram, irão para o fim da fila, ou têm meios para aceder a alguma quantidade? Talvez não para a população inteira, mas para as suas populações de risco e profissionais de saúde?», questiona.

É que as quantias de dinheiro que já estão em cima da mesa são astronómicas, bem longe do que muitos países conseguem pagar antecipadamente. Esta semana, os EUA prometeram à farmacêutica norte-americana Pfizer e à alemã BioNTech que pagarão o equivalente a 1,68 mil milhões de euros por 100 milhões de doses da sua vacina, com opção de compra de outros 500 milhões, caso passe os ensaios clínicos; os países europeus reuniram um fundo de dois mil milhões de euros para a a vacina, enquanto o Reino Unido foi às compras sozinho, conseguindo 180 milhões de doses de várias empresas.

«Vai ser fundamental criar mecanismo globais que estabeleçam preços justos, que garantam que todos têm acesso», considera Michael Gusmano, investigador de políticas públicas no Centro Hastings. Este professor na Faculdade de Saúde Pública de Rutgers. Teme que países menos poderosos fiquem fora da corrida, ou ainda mais dependentes de quem a consiga fornecer a vacina – sejam os EUA, a China ou os países europeus. «Vai ser incrivelmente intenso, creio que já é incrivelmente intenso», lamentou. «É parte do motivo pelo qual o nacionalismo em termos de vacinas, que temos visto da parte dos EUA, da China e de outros países é tão perturbador».

 

Cooperação científica no meio de uma disputa feroz

Com o mundo farto do isolamento social, das máscaras e do receio constante, todos os olhos estão virados pelos testes clínicos as às várias vacinas, ansiosos por descobrir se serão seguras ou não, e qual a sua eficácia. A corrida até se tornou o centro de elaboradas tramas de espionagem, com acusações de que hackers russos e chineses terão tentado roubar pesquisa do Reino Unido, EUA e Canadá, e cientistas chineses fugidos em solo norte-americano, acusados de espionagem (ver página 56).

À exceção desse género de incidentes, «até agora, tem havido uma colaboração muito boa no lado científico da questão», garante Yadav Prashant «Os cientistas têm cooperado até dentro da indústria, entre empresas diferentes, de países diferentes», nota o investigador. «O mais complicado é que, enquanto a ciência se torna cada vez mais colaborativa, a produção não está».

A produção de vacinas tende a ser tudo menos simples, com cadeias de distribuição cada vez mais complexas – e, como tal, mais frágeis. Por exemplo é prática comum que o grosso de uma vacina seja produzido por uma farmacêutica e depois enviado para outra fábrica, por vezes de outra empresa, noutro país, para ser embalado de forma estéril, o chamado fill and finish.

«Um país que tenha mais capacidade de fill and finish, está dizer a outros países, de forma transparente: ‘esta é a capacidade de fill and finish que temos, esta é a que estamos dispostos a partilhar’?», questiona Prashant. «O mesmo se aplica a coisas essenciais para uma vacina, além da própria vacina, sejam frascos de vidro, adjuvantes, seringas».

São os obstáculo que mal se ouve falar, quando se discute vacinação em massa: a sua produção terá de ser escalada rapidamente, na ordem dos milhares de milhões. «São coisas em que alguns países têm vantagem, porque têm maior capacidade de produção», avalia o investigador. «Será que serão usadas como fonte de vantagem estratégica, para negociar mais abastecimento para a população desse país? É aí que a dinâmica se torna muito mais complexa em termos de geopolítica».

 

Uma cadeia complexa

Quando falamos de frascos de vidro – um dos componentes básicos mais em risco de escassez – a dinâmica de poder não muda muito. «Tipicamente, a indústria dos frascos de vidro opta por localizar as suas fábricas perto de onde as grandes farmacêutica estão – Brasil, Índia, China, Coreia do Sul, Suíça, Alemanha, Estados Unidos», nota Prashant.

Quanto a seringas, também há produção um pouco por todo o mundo, com alguma concentração na Índia, China e EUA. No entanto, no que toca a adjuvantes, as substâncias que adicionamos às vacinas para amplificar a resposta imunitária, a história é muito diferente.

«Alguns adjuvantes utilizados por vacinas candidatas em ensaios clínicos são fabricados sinteticamente, outros são substâncias naturais. Um deles, por exemplo, vem da quilaia, uma árvore que só cresce no Chile e na Bolívia», exemplifica o investigador. «Se teremos suficiente, dependerá de quais vacinas usam quais adjuvantes, e de quais são aprovadas» . Além do controlo de adjuvantes poder dar mais margem de manobra a países menos poderosos para exigir doses suficientes de vacina.

O risco é que a complexidade da cadeias de produção e abastecimento de vacinas crie um caos total, pelo menos no início, com cada país por si. «Tem de haver capacidade de deslocar bens de um lado para o outro, tens de ter transporte aéreo, tens de ter transporte terrestre dentro de países. E isso é perturbado não só pela própria pandemia, mas pelas guerras comerciais em curso», alerta Michael Gusmano. Se sente um certo déjà vu, não estranhe: vimos algo semelhante há uns meses, com os conflitos pela compra de testes à covid-19, equipamento de proteção e ventiladores, no princípio da pandemia.

«O mesmo tipo de erros de planificação, de coordenação atempada e falhanços de governação podem causar problemas semelhantes. Mas seria de esperar que as lições que aprendemos tenham efeito, tornando a ação mais rápida. Nem que seja pelo incentivo económico em ultrapassar as pandemia», considera o professor. «Estou cético que tenhamos uma vacina pronta a distribuir antes do final de 2020, por isso temos tempo para nos preparar», salienta. «Mas o cientista político em mim pensa que os seres humanos são sempre capazes de repetir os seus erros».