Os escândalos do Rei em mérito

Nos últimos anos da sua vida, é impossível não associar o nome do antigo Rei de Espanha a controvérsias, mas será só isso que merece ser recordado do monarca?

"Os que têm menos de 40 anos só me recordarão pela Corinna, pelo elefante e pelas malas", terá confessado o Rei emérito de Espanha, Juan Carlos, de 82 anos, a um amigo, referindo os escândalos da sua vida pessoal que têm assombrado o seu percurso e feito a impopularidade crescer.

Algo que é um pouco injusto. Existem inúmeras coisas para recordar de Juan Carlos. Desde a sua intervenção em 2007, quando perguntou a Hugo Chávez, ex-Presidente da Venezuelana, "¿Por qué no te callas?", frase que continuará a ser repetida até à exaustão por pessoas que nem sabem quem a disse originalmente, até à sua dramática saída de Espanha, anunciada pelo próprio na semana passada, sem oferecer detalhes sobre qual seria o seu destino.
Se os que têm menos de 40 anos irão para sempre associar Juan Carlos aos escândalos, então o que é que os restantes ligarão ao ex-monarca?

 

Juanito, do colégio interno aos acordos com Franco 
Juan Carlos nasceu em Roma, em 1938, durante o exílio do seu avô, o Rei Afonso XIII, que governou o país até 1931, ano em que foi deposto depois da Segunda República Espanhola ter sido instaurada.

Era o segundo filho do infante Juan, Conde de Barcelona e da sua esposa a princesa María de las Mercedes de Borbón-Dos Sicilias. Viveu até 1942 na capital italiana, onde era carinhosamente tratado por Juanito, mas também chamou casa à Suíça, onde recebeu uma educação bastante austera num colégio interno dos Marianistas, em Friburgo, e no Estoril.

Em 1948 entrou pela primeira vez em Espanha, para estudar, algo que apenas foi possível depois da família real ter feito um acordo com um inimigo, o ditador Francisco Franco. 

O primeiro escândalo que marcou a sua vida aconteceu em 1956. De férias com o seu irmão mais novo, Afonso, na casa de verão da família, no Estoril, Alfonso foi baleado dentro da habitação e faleceu. 

Segundo a embaixada de Espanha em Portugal, "enquanto Sua Alteza o Infante Alfonso limpava um revólver naquela noite com o seu irmão, foi disparado um tiro que o atingiu na testa e o matou em alguns minutos", escreveram em comunicado. 

Apesar de não existir a certeza sobre o que aconteceu, a única pessoa que acompanhava Alfonso era Juan Carlos e, segundo a imprensa espanhola, a arma terá sido manuseada pelo irmão mais velho que a disparou sem saber que estava carregada. Juan Carlos tinha 18 anos e o seu irmão 14.

 

O Rei que manteve um país unido 

Apesar do atribulado percurso, 13 anos depois, em 1969, Franco, mesmo depois de Espanha já ter extinguido a monarquia, nomeou Juan Carlos Príncipe de Espanha (ao contrário do habitual título, Príncipe das Astúrias). Este apenas chegaria a Rei (dois dias) após a morte de Franco, em 1975. Na primeira vez que se dirigiu aos espanhóis enquanto Rei, este revelou os seus objetivos: "Restabelecer a democracia e ser Rei de todos os espanhóis, sem exceção".

Esta transição da ditadura para a democracia, nos anos 1970, comandada pelo então Rei, fez-se pacificamente e, segundo o líder comunista, Santiago Carrilo, se não fosse a sua atuação "os tiros já tinham começado".

O auge do seu Governo terá sido a Constituição de 1978, que estabeleceu a monarquia parlamentar, em que o Rei arbitra e modera o funcionamento regular das instituições políticas, no entanto, foi pela forma como lidou com o frustrado golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981 para depor o Governo democrata que o tornaram numa das figuras mais amadas de Espanha.

"Se o Rei tivesse morrido antes da infame viagem para caçar os elefantes, ele tinha morrido como um herói, o homem que miraculosamente transitou [o país] para a democracia, um símbolo da modernização de Espanha", explicou ao El País o historiador francês Laurence Debray, autor de uma biografia sobre a vida de Juan Carlos. "Acredito que ninguém estava à espera de um final tão triste, em que apenas se fala sobre a corrupção e as amantes e se esquece todo o seu trabalho político. É uma deceção completa. Um fim trágico para um destino triste: nascer no exílio, crescer numa escola rigorosa na Suíça, perder um irmão, viver em Espanha enquanto dependia do inimigo do seu pai, Franco…".

 

A fatídica viagem 

A queda metafórica de Juan Carlos pode ser traçada a uma queda literal. Em abril de 2012, foi divulgado que o ex-Rei de Espanha tinha fraturado a anca numa queda durante uma caçada a elefantes num safari para milionários no Botswana, que obrigou o Rei a ser transportado de África para Espanha.

O povo espanhol, que enfrentava uma grave crise económica e via os números do desemprego a bater recordes, condenou o dinheiro gasto em todos estes luxos.
"Equivoquei-me e não voltará a acontecer", disse o Rei à saída do hospital, mas esta seria a primeira de várias desculpas públicas. 
Em 2014, face ao escalar da tensão e depois da sua filha Cristina e o marido terem sido acusados de desviar fundos públicos para proveito próprio, conhecido como escândalo Noos, Juan Carlos abdicou do trono e cedeu o lugar ao filho, Felipe VI.
Era de esperar que, agora, o Rei emérito aproveitasse a reforma tranquilamente, mas os escândalos continuariam a persegui-lo.

 

O dinheiro árabe e a amante 

A viagem foi paga por Mohamed Eyad Kayali, um magnata sírio, assessor da realeza saudita, que tinha sido o representante de empresas espanholas durante as negociações para a construção do AVE do Deserto, um comboio de alta velocidade entre Meca e Medina, que custo cerca de sete biliões de euros.
A Justiça espanhola e a Suíça suspeitavam que as negociações tivessem sido pagas através de comissões ilegais e o jornal suíço Tribune de Genève, revelou que o antigo Rei terá recebido 100 milhões de dólares do Governo saudita neste negócio.
O dinheiro terá sido depositado num banco suíço e 65 milhões terão sido colocados em nome de Corinna Larsen, uma das amantes do Rei [as relações do Rei chegaram a ser alvo de um livro intitulado: Juan Carlos I: o Rei das 5.000 amantes] que o tinha acompanhado na viagem até ao Botswana, conseguindo assim excluir este montante de qualquer herança.
Quando Larsen foi questionada na Suíça sobre a origem do dinheiro esta justificou tratar-se de um presente de "gratidão e amor".

Adeus Espanha 
Desde que Felipe VI assumiu o poder, este sempre vincou a sua luta contra a corrupção e, como tal, em março deste ano, o atual Rei de Espanha renunciou a qualquer tipo de herança do seu pai e retirou-lhe a verba anual de 194 mil euros prevista no orçamento da Casa Real.
No dia 3 do presente mês, Juan Carlos comunicou ao filho que iria abandonar Espanha, devido às "repercussão pública que estão a gerar certos acontecimentos do seu passado" e que teme que venham a afetar o seu filho de cumprir as suas funções "com a tranquilidade e o sossego" que a função de Rei exige. 
Desde esta inesperada notícia, muitos tem especulado para onde irá agora viver Juan Carlos, alguns apontam inclusive Portugal como um destino.