De violão em punho, tornou-se músico do mundo que tomou como missão por a sua «mestiçagem» nas notas que lhe saíam sem esforço das mãos. Há anos radicado em Portugal, Waldemar Bastos morreu no início da semana, depois de um ano a lutar contra um problema oncológico. Tinha 66 anos.
Nascido  a 4 de janeiro de 1954 em São Salvador do Congo, hoje M’Banza Congo, uma zona rural de Angola, os pais cedo lhe detetaram a queda para a música. Chegado o Natal, ofereceram-lhe um acordeão, e isso bastou para que Waldemar Bastos fosse descobrindo por si as notas, como quem afaga algum torso majestoso. Não pararia mais de perseguir o sonho.

Numa entrevista que deu ao Diário de Notícias, em 2016, Waldemar reconhecia que este fora o dom que Deus lhe deu e a partir do qual foi puxando um destino, empenhado menos em ser um artista comercial, do que em transmitir aquela confiança da verdadeira beleza, que aparece como «uma centelha da pátria celestial». Nesses dias, estava a fazer uma inversão, retornando à graça singela do violão, preparando-se para gravar um disco acústico, isto depois de ter dado a volta ao mundo, elevando pelo caminho a música tradicional angolana como repertório digno de ser tocado pela orquestra sinfónica de Londres ou pela Orquestra Gulbenkian. Waldemar recordava-se então como tinha começado em Cabinda em conjuntos de baile e grupos de rock. Foi o mais longe que podia – «dei a volta ao meu sonho musical», reconhecia. «Agora regressei à fonte, ao violão, tenho mais maturidade e consigo transmitir de uma forma mais profunda e orgânica a minha alma». O músico descrevia a sua alma como «atlântica», e definia a sua sonoridade como afro-luso-atlântica. Sendo angolano, depois de, na década de 1980, ter abandonado uma das delegações culturais do seu país, as quais, após a independência, em 1975, viajavam por diversos países do bloco soviético, o músico foi para a Alemanha Federal antes de ir viver para o Brasil. Foi aí que gravou o seu primeiro disco de estúdio, em 1983, Estamos Juntos, tendo contado com a ajuda de Chico Buarque, que conhecera no projeto Kalunga, e que também surge entre os artistas convidados, juntamente com Jacques Morenlenbaum, no álbum que logo seria um marco.
 
Naquela entrevista, Waldemar fazia questão de relevar na sua identidade a mestiçagem, que começava pela cultura portuguesa, pelo lado paterno, e a africana do lado materno, com influências de música clássica, dos ritmos que o foram impressionando no Brasil e depois quando, em meados dos anos 1980, se radicou em Portugal. Na revisitação que estava a fazer, destacava ainda a influência dos blues, do jazz e alguma sensibilidade pop. Galardoado com o prémio de New Artist of the Year nos World Music Awards em 1999, o músico acabou por bater de frente com o regime de José Eduardo dos Santos, acusando-o de perseguição por estes se recusar a dar-lhe o seu apoio. «Foram poucas ou nenhumas as vezes em que me deixaram cantar no meu país», alegou em 2016 no Facebook, acrescentando que se sentia vigiado «todos os dias, palmo a palmo, pela polícia secreta e ‘bufos’ ao serviço do regime no poder em Angola». Questionado sobre se lhe era permitido visitar o país, respondeu que sim, mas que persistia um «ódio de estimação», que expulsava quem quer que não correspondesse à imagem que a ditadura queria passar, dentro e fora do país. «O importante agora é ter uma música sensual, para dançar, e romântica e criar um núcleo de artistas que fazem parte da corte. Lá e alguns deles postos cá».
Antes ainda das eleições legislativas de 2017, que elegeram João Lourenço e puseram fim ao reinado da família dos Santos, Waldemar acreditava na mudança, e embora deixasse claro que não tinha quaisquer ambições políticas, incluía-se entre «a geração dos que ajudámos à libertação, e depois fomos coartados». O motivo de esperança prendia, para o música, com a própria natureza daquele continente e das suas gentes, que acabariam sempre por desejar viver em liberdade. «África é portentosa, Angola é portentosa, basta olhar para a selva, para a natureza, os rios caudalosos, as montanhas, a selva do Maiombe, a vegetação, os animais. Angola é aquilo que se chama África em força – elefantes, leões, tigres. Não é possível derrubar um embondeiro, ele fica com as suas raízes. Felizmente, nós, cantores da alma, não deixámos morrer isso, e ainda mais agora com as novas tecnologias».
A partir do momento em que houve sinais de abertura no regime, a relação de Waldemar com as autoridades melhorou, e, em 2018, com a atribuição do Prémio Nacional de Cultura e Artes, a ele e a Bonga, foram vistos como uma tentativa de sanar as velhas feridas com os nomes mais significativos da cultura angolana e que o antecessor de João Lourenço tinha irradiado. 
O funeral de Waldemar Bastos, o o único não fadista a cantar na cerimónia de transladação, no Panteão Nacional, em Lisboa, do corpo de Amália Rodrigues, realizou-se na passada quarta-feira, no Estoril.