Cabo Delgado. Tortura e massacres

Por trás do nevoeiro da guerra, o vídeo de uma mulher assassinada por homens fardados chocou Moçambique.

Uma mulher gritou, nua e desesperada, enquanto homens de uniforme militar a espancavam com paus. Estava à beira da estrada que liga Mocimboa da Praia à aldeia de Diaca, na província moçambicana de Cabo Delgado, palco de uma insurreição de jiadistas, a quem chamam al-shabaab. A mulher cambaleia, é atingida por rajadas de metralhadora e cai. «Essa é da al-shabaab», gritavam. O vídeo, que se pensa ter sido gravado a 7 de setembro e foi divulgado esta semana, mostra um dos muitos abusos atribuídos aos militares moçambicanos. Dias antes, a Amnistia Internacional alertara para tortura, execuções e desmembramento de prisioneiros por soldados, bem como o transporte de um grande número de cadáveres para valas comuns.

A justificação para o homicídio, dada por um militar a um investigador da Amnistia, não podia ser mais bizarra. A mulher assassinada era uma bruxa, que enfeitiçou as tropas moçambicanas e recusou-se a mostrar-lhes o esconderijo dos insurgentes. Talvez fosse o bode expiatório para a pesada derrota sofrida na manhã desse dia, quando duas centenas de militares e polícias moçambicanos, incluindo artilheiros e agentes da Unidade de Intervenção Rápida, foram emboscados na nacional 380, a menos de dois quilómetros de onde foi gravado o vídeo – são uns três minutos de carro, vê-se no Google Maps.

A coluna encabeçava uma «mega-operação» para recuperar Mocimboa da Praia, cujo porto é um ponto de abastecimento vital para os enormes campos petrolíferas da região, e que está nas mãos dos insurgentes desde meados de agosto. Acabaram por ser postos em fuga face a um bloqueio na estrada, com dois veículos queimados e baixas de ambos os lados, avançou a Carta de Moçambique.

Maputo apressou-se a negar que o homicídio da mulher tenha sido cometido pelas suas tropas derrotadas, furiosas. O ministro da Defesa moçambicano, Jaime Neto, assegurou que o vídeo é da autoria de «pessoas maliciosas», com o objetivo de denegrir as Forças Armadas. Entretanto, as provas de abusos e massacres dos militares em Cabo Delgado vão-se acumulando.

Tortura e ofensivas de charme

«É uma questão de vazio», assegura Milissão Nuvunga, diretor executivo do Centro de Estudos de Democracia e Desenvolvimento, ao SOL. Parece-lhe pouco provável que o massacre e tortura de civis seja uma ordem do Ministério da Defesa, consciente de que é um incentivo forte ao recrutamento pelos jiadistas. Contudo, «muitos soldados sentem-se abandonados. Há relatos de que não têm munições, que estão desaparecidos, foram entregues à sua sorte. E num contexto de guerra isso cria estes comportamentos», considera.

O conflito arrasta-se desde 2017, quando os jiadistas tomaram Mocimboa da Praia, antes de serem repelidos. O assunto foi desvalorizado pelas autoridades, que selaram o acesso ao norte da província e trataram a insurgência como mero banditismo durante anos. Até que o perigo se tornou demasiado óbvio para ignorar. 

«Temos uma insurgência que primeiro foi tratada pela polícia, depois pelas Força de Intervenção Rápida e agora pelo ministério da Defesa», enumera Nuvunga. «A nível local, os soldados ficam sem uma estrutura de comando clara. Isso confunde as regras. Quais são as regras sobre o que os soldados vão fazer, os objetivos?».

Enquanto os militares são acusados de torturar civis, os jiadistas alternam entre atrocidades e ofensivas de charme, como fizeram em março, quando tomaram brevemente Quissanga e Mocimboa da Praia. Antes de serem escorraçados, há relatos de que deram uma enorme festa com parte da população – no rescaldo foram encontrados cadáveres nas ruas, alguns algemados.

Na altura, o diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), Salvador Forquilha, avisou ao SOL: «Quando as populações locais começam a olhar para estes grupos como vindo salvar a situação, dá para imaginar para onde isso pode caminhar». É que com maior apoio popular vem maior recrutamento, menos denúncias, mais olhos sobre as tropas moçambicanas e a capacidade destes grupos desaparecerem entre a população.

«A liderança política não está a fazer o seu trabalho. Os militares ficam presos numa guerra sem política. E uma guerra sem política não é nada», exaspera-se Nuvunga. «Como diz Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios», prossegue. «Mas os políticos nem sequer dizem qual é a estratégia em Cabo Delgado, tirando discursos vazios sobre segurança, soberania, unidade nacional, que não têm qualquer ligação com a realidade do povo».

«Então o soldado fica preso, armado, numa sociedade em que não têm um objetivo concreto. Isso é muito perigoso, extremamente destrutivo», lamenta o investigador. «No stresse da guerra civil, isso leva-os a tomar medidas pelas próprias mãos. Porque eles sentem-se atacados pelos próprios civis que deviam estar a defender».

Mudanças estruturais

Ao olhar para homens fardados a acossar uma mulher nua, ouvindo os seus gritos de escárnio, o entusiasmo quando disparam, é difícil não ver nos abusos das tropas um ódio mais profundo que a mera frustração.

Talvez seja um fator as tensões entre os muanis, uma etnia muçulmana, vista como carne para canhão dos jiadistas, e os macondes, uma etnia cristã, considerada a elite de Cabo Delgado, reforçada por tropas vindas do sul, maioritariamente cristão. Nos vídeos denunciados pela Amnistia Internacional, onde se vê um soldado a cortar uma orelha a um prisioneiro e atirá-la para o chão, para gáudio dos seus camaradas, os torturadores falavam português e changana, uma língua do sul.

«Antes da independência, durante mais de mil anos, as elites da costa – suaílis, muanis e depois criolas – dedicavam-se ao comércio, eram quem tinha poder e contacto com o mundo», explica Nuvunga. «Com o colonialismo português, num contexto de cristianismo contra o islamismo, começou logo esse esforço de isolar essas elites, marginalizá-las na construção de um Estado colonial. Depois vem a guerra de libertação nacional, que no fim foi dominada por uma elite cristã do sul».

«Maputo era lar de uma elite não muito favorável ao islamismo, que conquista a independência aliada ao único grupo a que podia aliar-se em Cabo Delgado, os macondes, que eram párias no tempo colonial», salienta o investigador. «Chamavam-lhes analfabetos, brutos, burros, ignorantes, todos os nomes imagináveis as pessoas davam».

Contudo, com a vitória veio a ascensão social, muitos macondes enriqueceram, foram subindo na hierarquia das Forças Armadas, tornaram-se influentes generais. Aliás, o atual Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, nasceu no planalto maconde, em Cabo Delgado.

«Vieram para cá, ficaram com o poder em Maputo. E nesses anos transformaram-se de grupo que mal existia na historiografia política da província no grupo dominante», diz Nuvunga. «Consegue imaginar que em Portugal, em 40 anos, houvesse mudança total de elites e paz social no país? É impensável. Foi isso que aconteceu em Cabo Delgado». 

Tudo acelerou com a descoberta de recursos minerais em Cabo Delgado, desde rubis, a ouro, mármore, grafite e gás liquefeito. Debaixo do chão estão reservas petrolíferas avaliadas nuns astronómicos 50 mil milhões de euros, avidamente cobiçados por gigantes como a francesa Total e Exxon Mobil, cujas perfurações se centram na península da Afungi, perto de Mocimboa da Praia.

Entretanto, nos arredores, ao longo dos anos, aldeias inteiras viram as suas machambas – ou quintas de subsistência – queimadas, famílias viram as suas terras expropriadas para dar lugar à exploração de minerais. Até agora, a população viu pouco dos lucros. E o ressentimento acumulou-se.

«Antes do gás e das pedras preciosas, a província não tinha interesse económico. Toda a gente que estava em Maputo, que era maconde e tinha dinheiro, não tinha muita expressão na província, porque o dinheiro fazia-se em Maputo. Quando vem o gás, eles assinam os contratos e ficam os donos de tudo. Foi o culminar de todo um processo de mudança da estrutura social», nota Nuvunga. «E esse tipo de mudanças normalmente levam ao conflito».

‘Terra de ninguém’

Entretanto, as tropas moçambicanas continuam a ser atiradas contra a insurreição, no meio de uma população desconfiada ou ressentida quanto ao Estado. Foi uma luta para lhes pagar os subsídios, falta-lhes os meios aéreos necessários para atravessar as densas matas de Cabo Delgado. De vez em quando, mercenários russos ou sul-africanos dão apoio aéreo, até agora sem grandes resultados a apresentar – centram-se sobretudo em proteger as explorações petrolíferas das multinacionais.

«Ouvimos muitos relatos, evidências anedóticas, que o filho de tal fulano fugiu da guerra, voltou, está escondido no sítio tal, diz que estão a morrer muitos», nota Nuvunga, cujo instituto prepara relatórios regulares sobre a situação em Cabo Delgado. No meio do nevoeiro da guerra é sempre difícil saber o que se passa. Mas a falta de transparência das autoridades moçambicanas é gritante. 

«Os meus colegas dizem-me que está cada vez mais difícil fazer trabalho lá», lamenta o investigador. «Há uma simbiose muito grande entre o exército e a parte civil do Governo. Os militares não estão a prestar contas a ninguém, os militares são os civis, os civis são os militares. Não sabemos com quem falar para perceber o que os militares andam a fazer», acrescenta. «E depois há o eterno SISE», nota Nuvunga, referindo-se ao Serviço de Informações e Segurança do Estado, as secretas de Moçambique. «O eterno, omnipotente, omnipresente SISE. Aparecem em todo o lado». 

«Já viu o filme O Resgate do Soldado Ryan?», pergunta Nuvunga, numa menção ao épico de 1998 de Steven Spielberg, protagonizado por Tom Hanks. «O alto comando americano manda aqueles grupo de soldados para ir lá salvar o último dos irmãos», relembra. «É uma história que só faz sentido num contexto em que a vida humana tem valor. Em que os pais recebem informação pública de que os filhos estão a morrer». 

«A realidade em Moçambique é que não há comunicação sobre as vítimas, ninguém morre do lado do Governo. Não se sabe quantos soldados foram enviados, quem está estacionado lá», lamenta. «Diz-se que as pessoas são intimidadas para não comunicar, para não reclamar, a não dizer que nunca mais ouviram falar do filho».

«É uma terra de ninguém», resume Nuvunga. «A guerra está a ser tratada como um exercício de relações públicas».