A luta pelo lugar da juíza que era um ícone pop

No leito de morte, Ruth Bader Ginsburg pediu para só a substituírem após as eleições. Já Trump quer nomear uma conservadora, que pode moldar o país por gerações. 

Num Supremo Tribunal cada vez mais conservador, Ruth Bader Ginsburg, uma juíza liberal conhecida pela defesa dos direitos das mulheres, tornou-se um “ícone feminista da cultura pop, uma heroína de livros de banda desenhada”, aos olhos da esquerda norte-americana, como descreveu a New Yorker. A sua morte, aos 87 anos, a meras semanas das eleições, deixou um vazio no Supremo Tribunal, que o Presidente Donald Trump tentará ocupar, enquanto os democratas se mobilizam para o travar. Seja quem for que Trump escolha para suceder a Ginsburg, terá um mandato que dura uma vida, podendo influenciar a política norte-americana por mais de uma geração, em legislação relativa ao direito ao voto, ao aborto, à descriminação racial ou de pessoas LGBT+.

Caso Trump seja bem sucedido, talvez o novo rosto no Supremo Tribunal seja o legado mais duradouro da sua administração. Ginsburg – a quem chamavam carinhosamente de “Notorious RBG”, numa referência lendário rei do hip hop de Nova Iorque, Notorious BIG – estava bem consciente disso. “O meu mais fervoroso desejo é não ser substituída até que um novo Presidente seja instalado”, escreveu a juíza numa carta de despedida à neta, citada pela NPR.

O Presidente tem uma posição diferente. “Irei apresentar um nomeado na próxima semana. Será uma mulher”, prometeu Trump este sábado, num comício na Carolina do Norte. “De facto, eu até gosto mais de mulheres do que de homens”.

Já o seu adversário, o democrata Joe Biden, tem apelado a que seja o próximo chefe de Estado a tomar essa decisão. Afinal, quando Biden era vice-presidente, em 2016, o líder do senado, o republicano Mitch McConnell, bloqueou um juiz escolhido por Barack Obama para o Supremo Tribunal, argumentando que faltavam apenas nove meses para as eleições.

Entretanto, McConnell mudou de ideias, sujeitando-se a acusações de hipocrisia, e mostrou-se disposto a aceitar a escolha do Presidente, que poderá ter a rara oportunidade de nomear três juízes do Supremo Tribunal. Com mais uma nomeação de Trump, a composição do tribunal passaria a ser de 6 para 3, a favor dos conservadores.

Tecnicamente, é suposto os juízes do Supremo Tribunal serem imparciais. “Não temos juízes Obama ou juízes Trump, juízes Bush ou juízes Clinton”, declarou em 2018 atual líder do coletivo de juízes, John Roberts, um conservador moderado, que muitas vezes apoiou decisões mais liberais. Na prática, as diferenças ideológicas entre juízes sempre influenciaram a sua interpretação da legislação – daí que a sua escolha tenha sempre contornos políticos.

 

Base conservadora Além dos impactos a longo prazo, a nomeação de uma sucessora de Ginsburg pode efeitos imediatos nestas eleições. “É difícil não ver como isto ajuda politicamente Trump”, notou Alex Conant, um estratega republicano veterano, à Associated Press. “Biden quer que a eleição seja um referendo a Trump. Agora, vai ser um referendo a se ele nomeia alguém para o Supremo Tribunal”.

Para a base conservadora republicana, conhecida pela capacidade de se mobilizar à volta de temas como a oposição ao aborto, a perspetiva de virar o Supremo Tribunal à direita durante décadas pode ser exatamente o que faltava para ultrapassar algum ceticismo relativo a Trump. Aliás, vimos o mesmo na campanha de 2016, quando Trump, antes de ser eleito, decidiu divulgar a sua lista de nomes para o Supremo Tribunal. Uma manobra sem precedentes, creditada por uma maré de apoio dos evangélicos conservadores.

Mais à frente, ainda há a questão de uma eventual disputa da validade das eleições – Trump já deixou no ar a sugestão de que poderia não aceitar uma derrota. Aí, a decisão passaria pelas mãos do Supremo Tribunal, como em 2000, quando o candidato democrata, Al Gore, exigiu a recontagem dos votos na Florida, que poderia dar-lhe a vitória contra o republicano George W. Bush – o tribunal decidiu por 5 contra 4 a favor de Bush.

 

Malabarismo A tarefa que Mitch McConnel tem pela frente é tudo menos simples. Terá de preparar o senado para votar a juíza nomeada por Trump em tempo recorde, em menos de 45 dias, enquanto simultaneamente mantém os seus senadores mais moderados em ordem. São precisos 51 senadores para aprovar um juiz do Supremo Tribunal. Os republicanos têm 53 e dois deram a entender que não apoiariam uma nomeação antes das eleições.

Os cálculos são complexos e a janela de tempo apertada. Se os republicanos acharem que os ganhos políticos de nomear um juiz são inferiores aos estragos, podem deixar a decisão para depois das eleições. Tecnicamente, o Presidente cessante pode nomear um juiz, mesmo que derrotado. Contudo, nem todos os republicanos achariam a manobra legítima, e pelo meio o lugar de senador do Arizona vai votos, a incumbente republicana arrisca perder e diminuir ainda mais a margem de manobra de McConnel.  

Pelo meio, os democratas preparam-se para o pior e planeiam a retaliação. “Está tudo em cima da mesa”, avisou Kamala Harris, candidata a vice-presidente. E Pete Buttigieg, um dos candidatos democratas derrotados nas primárias, até sugeriu aumentar o número de juízes do Supremo Tribunal. Algo que não acontece desde 1869, mas que não é ilegal.