Noutros tempos era habitual as pinturas estarem protegidas por um pano ou uma cortina, que as resguardava do pó e da luz. Já A Origem do Mundo, o escandaloso quadro que representa uma vulva e o respetivo tufo de pêlos, tinha a cobri-louma outra obra que representava uma inofensiva paisagem. Para apreciar a nudez crua pintada por Courbet em 1866, era preciso conhecer esse segredo e afastar a paisagem, um privilégio que os sucessivos proprietários da obra, entre os quais o psicanalista Jacques Lacan, só concediam aos amigos do círculo mais íntimo.
Na exposição Behind the Green Door (que toma de empréstimo o título de um filme pornográfico norte-americano de 1972) não há nenhum desses artifícios, apesar do conteúdo explicitamente homoerótico das pinturas exibidas. A triagem dos visitantes é feita antes, até porque Carlos Barahona Possollo, o autor das pinturas, não quer chocar ninguém gratuitamente. «As pessoas estão avisadas, sabem que é para lá da margem».
O acesso está interdito a menores de 18 anos e é preciso fazer marcação prévia. De resto, não são apenas as obras, cada uma alusiva a um dos cinco elementos – ar, água, espírito, terra e fogo –, que podem provocar uma reação forte. Também o local é inusitado:_uma antiga casa de banho pública no pequeno jardim Camilo Castelo Branco, junto ao Marquês de Pombal, em Lisboa. Um_pequeno espaço subterrâneo com as paredes escalavradas, onde se chega descendo um lanço de escadas.
A escolha não foi inocente. Lugares de encontros fortuitos, com as paredes cobertas por mensagens escabrosas, «as casas de banho públicas acabam por ser um símbolo da repressão sobre a sexualidade marginal», diz o pintor.
Mas Carlos Barahona Possollo não é de modo algum um artista marginal. No seu currículo contam-se o retrato oficial de Cavaco Silva, patente no Museu da Presidência, e um Santo António que_em 2017 foi oferecido ao Papa e por ele benzido. Barahona Possollo não vê nisso qualquer contradição. E recorda que o próprio Francisco «vincou muito bem que o prazer é algo de sagrado». Behind the Green Door pode ser visitada até 17 de outubro.
Porquê fazer uma exposição numa casa de banho?
Não é uma casa de banho qualquer, é uma casa de banho pública. Esta, em particular, penso que fechou há cerca de 40 anos, mas era uma das clássicas de Lisboa. As casas de banho públicas eram lugares complicados, onde aconteciam coisas marginais. Veja o George Michael, que foi preso em Nova Iorque em circunstâncias destas. E portanto as casas de banho públicas acabam por ser um símbolo da repressão sobre a sexualidade marginal.
É como se essa sexualidade fosse empurrada para uma vida subterrânea?
Exatamente. É o verdadeiro underground. Aqui, este conjunto de pinturas adquire uma dimensão sócio-política, além da simples provocação. E é curioso, nos tempos que correm, falar em temas fraturantes quando há um certo negacionismo. Há pessoas que se preocupam em não perder liberdades, e eu sou uma delas.
Acha que a homossexualidade ainda é um tema fraturante, ou só quando ela está muito explícita, como no caso destas pinturas?
Para muitas pessoas já não será, especialmente as mais urbanas – embora o ambiente rural também tenha casos muitos específicos de integração perfeita. Mas as cenas de sexo explícito – mesmo hetero – são sempre marginais. E estas, pior ainda… Talvez este espaço reduzido e o facto de as pessoas terem de entrar quase uma a uma ajude a não causar um escândalo tão grande. É muito reservado, não está ao público de uma maneira tão exposta, porque a minha intenção não é chocar gratuitamente. As pessoas estão avisadas, sabem o âmbito e vão com uma atitude diferente. Sabem que é para lá da margem. [risos]
Normalmente fala-se dos quatro elementos [água, fogo, terra e ar], mas aqui há um quinto representado.
Sim, o espírito.
Por um lado temos uma dimensão muito carnal, por outro temos o espírito, associado a um ato sexual. É para dizer que o corpo e o espírito não são realidades antagónicas?
É isso mesmo. O que está em cima é o que está em baixo, é um contínuo entre a matéria e o espírito. Eu não consigo entender as duas coisas como inimigas, como uma certa moral antiga, que pretendia que a carne fosse inimiga do espírito. Há muitas figurações em que elas lutam. Eu acho que são um contínuo. A física quântica talvez um dia explique como o espírito é matéria e a matéria é espírito [risos]. E até o Papa atual veio, há pouco tempo, desculpabilizar o prazer. Não é que os católicos não vivessem o prazer, porque há sempre a confissão para tirar a culpa – os protestantes são muito mais sofridos na questão do prazer e da culpa. Mas o Papa vincou muito bem que o prazer é algo de sagrado.
A moral cristã, que está muito presente na nossa educação, habitua-nos desde cedo a associar o prazer e a culpa, o prazer e o pecado. Ficamos sempre com a ideia de que se vivemos uma coisa boa, depois temos de nos penitenciar.
De pagar por isso.
Exato. A sua educação também passou por aí, também lhe transmitiu esse tipo de valores?
Eu cresci num ambiente nada religioso, as pessoas da minha família que tinham algum tipo de espiritualidade viviam-na numa privacidade absoluta. Não tive uma educação religiosa de maneira nenhuma, pelo contrário: a tradição da família era mais republicana laica, no geral. Mas aos 16 ou 17 anos achei que tinha de ter uma vida espiritual e fui fazer a catequese católica – a comunhão, o crisma, aquelas coisas clássicas. E depois aos 18 anos, um dia fui confessar-me à Basílica da Estrela, que tem uns confessionários que são umas peças de arte fabulosas – lá está, a Contra-Reforma a aliciar as pessoas a juntar-se à Igreja. E o padre era surdo, então tive de gritar os meus pecados todos ali.
Os seus pecados de adolescente…
Tardo-adolescente. O padre ficou fulo, porque eram coisas complicadas, ficou furioso e deu-me uma penitência pesadíssima. E quando eu me viro para trás estava um friso de velhinhas a olhar para mim com um olhar abismado. E eu pensei: ‘Não, acabou aqui hoje’. [risos] E abandonei o catolicismo.
E não ficaram resquícios, uma forma de catolicismo mais pessoal?
Crescemos numa cultura cristã. Há montes de valores que são inculcados desde que a pessoa aprende a falar. Aliás, até antes disso. E é muito difícil ao longo da vida a pessoa ir-se libertando de dogmas que não têm razão de ser em si. Hoje em dia não podia ser mais laico, tenho a minha forma de espiritualidade completamente privada, mas considero a laicidade na sociedade fundamental – e proselitismo nunca. As pessoas têm uma cabeça para pensar por si, quem somos nós para impor alguma coisa?
Estes quadros representam práticas mais ou menos comuns no universo homossexual?
Não serão assim tão comuns… São mais difundidas do que as pessoas julgam, mas não são assim tão vulgares. E há uma coisa interessante: aqui o sexo é entre homens, mas no campo dos fetiches há um ponto a partir do qual o género não é relevante. Podem ser objetos ou situações – como humilhação ou outras coisas – em que a excitação não depende de se é um homem, uma mulher, um cão ou um gato que está a orquestrar a coisa.
Estas situações foram encenadas?
Foram. Nem eu ia bater à porta de alguém que estivesse em cenas íntimas. ‘Desculpem lá, quero fazer umas pinturas’! Algumas destas pessoas nunca tinham visto nem experimentado estas coisas quando se fez a sessão. Alguns acharam piada, outros nem tanto. Mas foram encenadas, pensando mais ou menos em como a coisa se poderia passar [numa situação real e espontânea]. Mas, falando de teatro, quantas vezes a prática sexual não é em si uma representação de fantasmas, de papéis? Senti-me muito livre nesse âmbito de criar o que pode ser uma fantasia, mas tendo um referente bastante objetivo.
Tinha essas pessoas, fotografou-as e pintou a partir daí?
Exato. E quis fazer fotos com flash, mesmo, como se fossem instantâneos. As pessoas foram apanhadas naquele momento…
Em flagrante.
Exato. Como se fossem fotos domésticas, amadoras, para captar a parte natural.
Não optou por figuras idealizadas. Tem aqui um homem mais velho, ali um barrigudo…
Era importante essa veracidade. São sempre pessoas reais, e há tatuagens que algumas pessoas têm.
Não houve Photoshop?
Não, é o que é. Se estamos a falar de verdade era importante ter o máximo de veracidade nos modelos também.
Quando se faz uma pintura tem de se ter um conhecimento íntimo daquilo que se pinta ou o pintor pode pintar bem aquele tema sem ter necessidade de participar ou de conhecer mais de perto?
Digamos que não há aqui uma visão muito negra, muito profunda, porque estas coisas podem adquirir traços mais violentos. Mas dentro daquilo a que se chama vanilla…
Vanilla? O que é isso?
É o nome que se dá ao sexo suave, sem espinhas. Isto é um compromisso entre um vanilla e um hardcore, porque a dimensão do sofrimento e da dor, do sadomasoquismo, acho que tem um limite.
Mas às vezes existe uma contiguidade entre a dor e o prazer.
Sim, sim. As pessoas têm formatações no âmbito das preferências sexuais que têm muito a ver com as raízes mais profundas da sua natureza. Talvez por isso o acesso a essa dimensão seja tão vedado – é um acesso que vai muito longe, a pessoa fica muito vulnerável.
E estas pessoas que pintou não sentiram essa vulnerabilidade?
Acho que estavam de boa vontade, serenas… é como aqueles cremes que dizem: ‘Não houve testes em animais’. Ninguém foi violentado para fazer isto. [risos]
Existe uma tradição figurativa de pintura sexualmente explícita?
Obscena? Sim, existe. Mas ao longo dos séculos foi muitas vezes apagada. Até pelos próprios artistas. Por exemplo, o Aubrey Beardsley [ilustrador inglês, 1872-1898], que ilustrou muita literatura erótica, julgo que teve uma conversão e decidiu dar ordem de destruição a muito trabalho que tinha feito. Quando não são os próprios a fazer isso às vezes são os outros. Muitas obras eram encomendadas já com um caráter de pornografia, digamos assim, para locais muito privados – para quartos, para alcovas. Mas alguma coisa sobreviveu às purgas que se fizeram. No Museu Nacional de Nápoles há uma sala com pinturas e esculturas eróticas que têm uma cancela que tem de se abrir. As crianças não podem entrar. Está lá, mas está reservado. E o próprio quadro do Courbet, A Origem do Mundo, só há pouco tempo é que está ao público corrente.
Esse quadro pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan, que aliás o tinha escondido por outra pintura menos escandalosa, que depois desviava para mostrar aos amigos.
Mas talvez este aspeto circulasse mais nas gravuras, não tanto na pintura maior. Era fácil de esconder, podia circular. Os italianos têm muita coisa deste género. Há um autor italiano – só pode ser coincidência –, que é um famoso Caraglio… Fez muitas gravuras eróticas, que eram muito mais fáceis de divulgar e de difundir. E há um desenho supostamente porno atribuído ao Miguel Ângelo. Em certa medida há arte desse âmbito que os autores nem sequer assinam, por pudor.
Tal como há muita literatura erótica anónima.
Exato. Por exemplo, há o famoso Teleny [ou O Reverso da Medalha, novela gay de 1893] que dizem que é do Oscar Wilde, mas ninguém conseguiu provar. Eu próprio, há anos, fiz um livro de contos gay com um pseudónimo. Toda a gente sabia que era eu que tinha feito aquilo, mas pronto. [risos]
Esta não é a primeira vez que faz uma exposição com pintura sexualmente explícita. Quando se estreou teve reações muito negativas?
Sim. As pessoas que ouviram essas reações nem me vieram dizer, por gostarem de mim e não me quererem ver muito aflito. Porque, diretamente a mim, não sofri grande ataque. Mas sei que houve choro e ranger de dentes algures…
Quando pinta estas figuras humanas tem algum modelo artístico em mente?
O meu sonho é tentar fazer uma ponte com os autores do princípio do século XX, da Secessão vienense e de todo o Leste europeu, que têm uma qualidade extraordinária. E hoje em dia há muita gente a pintar maravilhosamente bem na escola anglo-saxónica, não só no Reino Unido como nos Estados Unidos. [Aponta para o rosto de uma figura] Esta técnica aqui já tem mais manchas, mais contrastes, interessa-me mais. Ou estas mãos, estão completamente diferentes. A pintura antiga não procura aquele efeito, é mais contemporâneo.
Na linha de um Lucian Freud?
Sim. Ele é o referente máximo, mas depois dele há muita gente extraordinária, gente a pintar muito, muito bem.
É do conhecimento comum que no Renascimento havia muito estudo de anatomia, até se dissecavam cadáveres. Para pintar estes corpos como os pintou também requer esses conhecimentos de anatomia?
Nas Belas-Artes temos uma cadeira de Anatomia e temos de conhecer pelo menos as estruturas que interferem com a superfície do corpo, com o visível. Tenho de saber que o rádio e o cúbito vão aparecer neste ponto do pulso e no cotovelo, e vai ter de estar no sítio certo. Isto é muito importante. O público até pode dizer ‘Eu não percebo nada de pintura’. Mas as pessoas percebem da vida e de tudo o que é inerente à vida. Por isso vão perceber, até de uma forma intuitiva, o que está certo e o que está errado, ou pelo menos vão perceber que alguma coisa não está bem. Tem de se ter muito cuidado com isso.
O resto da sua obra não tem esta carga…
É muito clássica, muito serena.
Para si estas pinturas explícitas e essas outras, clássicas, são coisas distintas? Estão arrumadas em gavetas diferentes?
Este estilo é muito ousado, muito direto, muito desafiante. Normalmente prefiro um compromisso entre um erotismo mais suave e uma beleza em que não tem de se passar por tantas questões de sexo ou de atração. Porque isto às vezes pode ser um bocadinho cansativo.
E pinta-se um pénis ereto com a mesma naturalidade que se pinta um palácio de Veneza [tema da sua última exposição]?
É uma regra da pintura – se bem que as regras são todas para infringir. Se se pintar exatamente tudo com a mesma atitude, com o mesmo discernimento, a pintura fica com uma unidade, uma coerência, que faz o milagre de desaparecer a tinta em si e fica só uma imagem cristalina, que é uma coisa muito intelectual, porque é um produto processado pelo cérebro de forma muito cuidada. Se esse processamento for sistemático, constante, se tiver o mesmo cuidado, a mesma atenção e o mesmo desprendimento, a pintura ganha uma clareza especial. Não quer dizer que aconteça sempre, em todas as zonas da pintura, mas esse é o ideal. Seja um genital ou seja uma laranja, tem de se olhar da mesma forma. A expressão depois pode-se modelar, mas o olhar imediato é uma coisa quase científica.
Quem diz uma laranja diz o Santo António?
Ou um Santo António. [risos] O quer que seja.
Não vê contradição entre fazer um Santo António para oferecer ao Papa ou uma destas pinturas transgressivas?
Eu não vejo, mas posso estar a ver a coisa mal. Há que adequar a pintura ao fim a que se destina. Agora, se o pintor uns dias se porta bem, outros dias se porta mal… considero que já seja do meu foro pessoal – embora exista a tendência para moralizar a vida dos outros.
Mas é assim que vê as coisas? Uns dias porta-se bem, outros dias é mais como aquele diabinho tatuado que aparece numa das pinturas?
Para mim não é, mas acredito que as pessoas vejam dessa forma. É o Dr. Jeckyll e o Mr. Hyde – não se sabe qual é que vai acordar amanhã. Eu não sinto que seja um problema, mas há pessoas que podem achar que tenho um problema.