A democracia, afinal, suspende-se

Mas quem é ele? Quem se julga o autor destas ameaças? Em que venezuela vive?

Há cidadãos que não se deixam ensinar nem sensibilizar. Eu quero que fique claro que todas as detenções que a PSP tem feito desde o início da pandemia, elas acontecem, portanto, a ação repressiva acontece quando as pessoas não querem nem se deixam sensibilizar. Ponto final».

Mas quem é ele? Quem se julga o autor destas ameaças? Em que venezuela vive?

Estas palavras – sic – foram proferidas pelo diretor nacional da PSP, Magina da Silva, com cara séria e sobrolhos carregados por baixo de uma viseira com que andou, sempre sem máscara, ao lado do ministro da Administração Interna, o socialista Eduardo Cabrita, do presidente da Câmara de Lisboa, o também socialista Fernando Medina, e do presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, o igualmente socialista Pedro Delgado Alves, à margem da inauguração da 41.ª Esquadra de Lisboa, na terça-feira, dia em que foi publicada a Lei que determina o uso obrigatório de máscara nos espaços públicos e imediatamente seguinte à divulgação do diploma que determina a proibição de circulação entre concelhos em todo o território nacional neste fim de semana em que se assinala o Dia de Todos os Santos (dia 1 de novembro, feriado religioso) e o de Fiéis Defuntos ou de Finados (dia 2).

Dá-se o caso de, há dias, um professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa ter sido surpreendido no final de uma aula por agentes da PSP plantados à porta da sala para o multar por ter estado a lecionar sem máscara, independentemente de apenas estarem 20 alunos presentes (ou 19 mais o ‘bufo’ que fez a queixa via telemóvel) e de guardar uma distância de uns bons metros (bem além do mínimo de dois recomendados pela DGS) para os estudantes.

Este professor, pelos vistos, inclui-se naquele conjunto de cidadãos que ‘não querem aprender nem se deixam sensibilizar’.

O que mais se estranha é que, volvidos dias sobre este insólito caso, continue sem se conhecer reação digna de registo do reitor da Universidade de Lisboa, nem que o ministro da Administração Interna tenha sido interpelado por alguém.

Noutros tempos, anteriores a 25 de abril de 1974, quando a Polícia ousou invadir o espaço das universidades sempre se levantou um coro de protestos de estudantes, docentes e reitores, independentemente das ideologias.

Como jamais, mesmo no tempo de Salazar, a Polícia pisou chão da Igreja, fosse em Fátima ou na célebre Capela do Rato – ou seja, havia mais limites do que agora.

De facto, ao fim de 41 anos de democracia, é incompreensível como se julga aceitável um discurso como o do diretor nacional da PSP, qual grande educador do povo.

Logo ele, quem – sendo público que já esteve infetado com covid-19 – aparece a circular sem máscara ao lado de altas figuras do Estado, todas usando a dita.

O discurso de Magina da Silva não é um discurso apenas autoritário; é prepotente, ameaçador, intimidador, procurando intencionalmente incutir medo e submissão ao cidadão comum.

Um discurso só possível pelos exemplos (e as ordens) vindos de cima, da sua tutela, do Governo e de quem o lidera e da complacência de quem, com poderes para o impedir, nada obstaculiza – ou seja, o Presidente da República. Mais a Oposição calada.

Com efeito, também não se compreende como pode o Governo decretar a proibição de circulação entre concelhos em todo o território nacional em clara violação da Constituição – como explicou Jorge Miranda – e mesmo invocando para tanto a Lei de Bases da Proteção Civil, porque qualquer lei, mesmo que de valor reforçado, nunca pode prevalecer sobre a Lei Fundamental.

E a Constituição é clara e taxativa: tal resolução do Conselho de Ministros teria de ser precedido da declaração do ‘estado de emergência’ – tal como aconteceu em março e abril passados e tal como, aliás, voltou agora a acontecer na vizinha Espanha, com Pedro Sánchez a anunciar atempadamente que os espanhóis devem estar preparados para que esta situação excecional de emergência seja sucessivamente renovada, pelo menos, nos próximos seis meses.

Essas são as regras da democracia constitucional.

Não são picuinhices de constitucionalistas, como as pretende qualificar António Costa, que vai ao ponto de afirmar que não gosta de «ser autoritário» – como se, enfim, fosse forçado a sê-lo.

É certo que o decreto proibicionista tem muitas nuances e exceções, por forma a tentar mascarar a derrogação dos direitos, liberdades e garantias em causa.

Mas a resolução do Conselho de Ministros não é uma mera «recomendação agravada», como a classificou o Presidente Marcelo para justificar uma incrível passividade – e o PR ainda se sujeita a que um comandante operacional da GNR venha contradizê-lo em conferência de imprensa???

Onde já se viu tamanha desfaçatez?

A resolução do Conselho de Ministros não passa de uma chico-espertice que serve na perfeição ao discurso de Magina da Silva e outros Rambos – porque as palavras do diretor nacional da PSP ecoam e aumentam no tom e na arrogância à medida que baixa a graduação e sobe a impreparação dos agentes da Policia ou os militares da Guarda.

Em 2008, Manuela Ferreira Leite, falando sobre a necessidade de reforma na Justiça, disse ironicamente numa palestra que seria preciso suspender a democracia por seis meses para pôr o país na ordem. Era, então, líder do PSD e caiu-lhe tudo em cima – do PCP ao CDS, mas sobretudo do PS e do próprio PSD. Inaceitável!!! – ouviu-se em coro.

Independentemente da pandemia, o quero, posso e mando de um Governo socialista é muito grave para a democracia.

E é mais grave quando ninguém se indigna, ninguém reage, todos se agacham.

Perante o autoritarismo de líderes como António Costa ou a prepotência de subalternos que abusam dos seus pequenos (ou grandes) poderes, o silêncio cúmplice ou as justificações complacentes são o pior serviço que pode prestar-se à democracia. Ponto final!