E tudo Trump levou (quase tudo)

Os Estados Unidos é hoje um país dividido, onde todos apenas conseguem concordar na sua divisão. A América está presa aos últimos quatro anos.

Por Vasco Pinto

Estudante de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico

Nos resquícios dos últimos dias de campanha, as sondagens apontam para uma larga diferença entre os candidatos presidenciais dos Estados Unidos, dando a vitória a Biden. A vantagem, no entanto, parece esbater-se na entrada da última semana antes das eleições, onde os ritmos de campanha são drasticamente diferentes: Trump é o promotor mais agressivo, com a realização de comícios todos os dias em pelo menos três estados. É aflitivo, a dois dias das eleições, ainda estarmos à espera do candidato democrata acompanhar o ritmo, mas parece que a estratégia é ficar no sótão até ao fim das eleições e esperar que não tenha um momento mais “sénior”, já que, com 77 anos, Biden é conhecido por ser a “máquina de gafes”.

Nas suas aparições, Biden apela à defesa da alma americana (seja lá o que isso for), enquanto Trump continua a defender a economia forte pré-covid que construiu. Há um clima de esperança por entre os democratas, mas também de um otimismo irritante que vê no próximo ciclo político a cura de todos os males, a realidade é esta: a confirmarem-se as sondagens, dia 3 de novembro a dupla democrata ganha as eleições, o inquilino da Casa Branca mudará, mas alguns problemas ficam.

Influência do Supremo Tribunal

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos é o tribunal federal de última instância, constituído por nove juízes que possuem a autoridade jurídica suprema dentro do país para interpretar e decidir questões quanto à lei federal, incluindo a Constituição. A constituição americana estipula que o mandato dos juízes é vitalício, estes podem decidir reformarem-se ou apenas sair voluntariamente, mas a história relembra que a maioria dos juízes nomeados fica até morrer. Sempre que um juiz abandona o cargo, o presidente incumbente nomeia um novo juiz para o Supremo Tribunal.

A escolha de um juiz deixa uma marca profunda durante gerações, muito além do mandato presidencial em que é nomeado. Já o presidente Ronald Reagon, em 1986, nomeou um juiz conservador que cumpriu funções até 2016, era novo na altura na nomeação, assim como os três conservadores apontados por Trump. Contas feitas, o Supremo Tribunal é hoje constituído por 6 juízes conservadores e 3 liberais, panorama que ficará igual durante os próximos anos.

Mudanças que desafiaram a Constituição passaram pelo Supremo Tribunal. A história dirá que direitos civis foram as marcas deixada por Obama: direito ao casamento por casais do mesmo sexo e a introdução do sistema de saúde Obamacare. Porém, ambas as reformas precisaram da validação do Supremo Tribunal, onde por uma unha, passaram com uma vantagem de apenas um voto (5 juízes votaram a favor e 4 contra).

Devido à minoria de juízes liberais no Supremo Tribunal, o mandato presidencial de Biden provavelmente não conseguirá introduzir os planos ambiciosos prometidos: reformas na segunda emenda (direito ao porte de armas), avanços nos direitos LGBTQ+ e alívio das dívidas financeiras aos estudantes universitários.

Desconfiança no processo eleitoral

Ainda na esfera de Washington D.C, as eleições ficaram marcadas pelas alegações de Trump sobre a transferência pacífica de poder no caso de perder as próximas eleições. Segundo o próprio, a única possibilidade de deixar a Casa Branca é se existirem fraudes no voto por correio.

O voto por correio foi introduzido na Guerra Civil Americana e deu a milhões de soldados a oportunidade de votarem, muitos pela primeira vez. Em 2016, século e meio depois, o voto por correio foi a maneira mais segura de votar, dado às suspeitas de ataques informáticos russos às urnas eletrónicas. O recorde de segurança não sossegou a maioria do eleitorado republicano, que votará presencialmente. Este facto poderá traduzir-se nas primeiras projeções da noite a darem a vitória a Trump, já que o voto presencial é o mais rápido para ser processado, enquanto os boletins por correio, maioria democrata, têm de passar por um processo de validação. Com a vitória nas primeiras projeções e com a ajuda da maioria no Supremo Tribunal, o presidente poderá empatar a contagem dos boletins recebidos por correio, alegando fraude. A partir daí, o playbook das eleições de 2000 Al Gore vs. George Bush, diz-nos que o Supremo arrastará as eleições durante semanas.

Um fim com Biden vitorioso, porém com a imagem desgastada de longos processos judiciais, será sempre um final ilegítimo para alguns na base trumpiana. O descrédito e as suspeitas de fraude eleitoral motivam rebeliões, que não casam bem com os atuais protestos antirracistas. Por isto, a vitória do democrata pode trazer uma guerra e dividir ainda mais o país, mais até que a vitória de Trump.

Questões raciais

A campanha 2020 marcou-se pela amnésia habitual dos media liberal americano perante as declarações do presidente, já que cada entrevista trazia sempre a mesma questão: “Denuncia supremacistas brancos e todas as formas de racismo?”, Trump responde quase sempre um nim, mascarado num ataque à esquerda: “a esquerda radical é bem pior, Black Lives Matter causam a destruição das nossas cidades”.

O uso excessivo de força policial têm gerado uma contestação selvática por alguns manifestantes, cidades como Filadélfia, Portland e Minneapolis ardem todas as noites sem fim à vista. O maior sindicato policial apoiou a candidatura de Trump, evidenciando preferir o clima de Law and Order cultivado pelo presidente, que rejeita a ideia de forças policiais sistemicamente racistas. Assim, Biden nunca conseguirá trabalhar com a polícia no sentido de resolver um problema, quando a maioria não reconhece existir um.

Os Estados Unidos é hoje um país dividido, onde todos apenas conseguem concordar na sua divisão. A América está presa aos últimos quatro anos.

Solução? COVID-19. Joe Biden tem uma oportunidade para assumir uma liderança diferente na gestão pandémica. É um fator importante e talvez o único que Biden manifestamente passará a controlar a partir do dia 1 da presidência. A esperança é que a pandemia se dissipe em meses e aproxime os americanos, num clima de recuperação económica e desemprego baixo. Esta reaproximação pós-pandémica de paz social é apenas um adesivo rápido para os problemas profundos do racismo e desconfiança eleitoral, mas fará com que a calma e o bom-senso sejam possíveis num debate democrático, até então impossíveis.

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