‘Balada para mi muerte’

1990, em San Paolo: até aí, nunca os napolitanos tinham estado perante o drama de escolher entre Deus e a pátria.

Há sempre uns tipos chatos, como moscas de verão caindo tontas nos copos de cerveja, que gostam de misturar números com poesia, e o homem que morreu no dia 25 de novembro, pelas três horas da tarde, no Bairro de Tigre, em Buenos Aires, era feito de poesia da cabeça aos pés sempre que uma bola resolvia fazer-lhe companhia. Calcularam cientificamente os chatos que, desde que começou a correr, ainda no meio-campo da Argentina, atravessando ingleses como se caminhasse por uma planície de gipsofilas, até fazer suavemente o golo na baliza de Peter Shilton, demorou exatamente dez segundos. Mentira! Durou uma, duas, três, dez milhões de vidas. Tantas vidas quantas as dos que puderam assistir a esse momento sem paralelo que nunca ninguém conseguirá imitar num campeonato do Mundo.

Depois, os cabalísticos descobriram que esses dez segundos decorreram dentro do minuto dez da segunda parte. Mas o que os cabalísticos também não sabem, tal como os contabilistas, é que 10 não é um número, é uma forma de estar na vida. Por isso é que o homem cujo esquife percorreu as ruas de Buenos Aires rodeado dos descamisados que o amavam para além das suas tão particulares mediocridades era um deus tão terreno que não se eximia aos momentos de batota. Quatro minutos antes da cavalgada valquiriana, erguera a mão para um golo batoteiro. A mão de Deus, disse apenas. E nós, embasbacados com a revelação: nunca tínhamos desconfiado, desde os primórdios da humanidade, que_Deus era canhoto. Foi preciso que um rapaz nascido em Vila Fiorito, entre barracas e fome, nos ensinasse a verdade sobre os caminhos ínvios desse ser que manda no céu e na terra, mas não manda na bola. «¿La mano de Dios? Les voy a explicar, les voy a explicar… El tiempo lo cura todo. Lo haría contra cualquier equipo del mundo, es mi forma de ser; siempre busco lo mejor para los míos».

Depois, para mostrar que não precisava da mão esquerda de Deus, usou o pé esquerdo de Deus. Um uruguaio, Victor Hugo Morales, escritor e radialista, abriu o microfone e chorou: «Gooool, gooool! Quero chorar, Santo Deus! Viva o futebol! É para chorar, me perdoem! Maradona em uma corrida memorável, na jogada de todos os tempos. ‘Barrilete cósmico’, de qual planeta você veio para deixar tantos ingleses pelo caminho, para que o país seja um punho apertado gritando pela Argentina? Diego! Diego! Diego Armando Maradona! Obrigado, Deus, pelo futebol, por Maradona, por essas lágrimas!!!».

Astor Pantaleón Piazzolla, outro argentino absolutamente mágico, nascido em La Plata em 1921, escreveu Balada Para Mi Muerte. No momento em que Diego Armando mergulha na profundidade da terra para se fazer esqueleto, há todo um mundo de palavras a fazer sentido no meio da balada: «Hoy que Dios me deja soñar/ A mi olvido ire por Santa Fe/ Se que en nuestra esquina vos ya estas/ Toda de tristeza hasta los pies!/ Abrazame fuerte que por dentro/ Oigo muertes, viejas muertes/ Agrediendo lo que ame/ Alma mia vamos yendo/ Llega el dia no llorés!».

Toda a tristeza até aos pés. Eu conheço Buenos Aires e a sua forma única de viver sofrendo, tantas vezes espezinhada por ditaduras canalhas de militares anacrónicos que fizeram as mães da Plaza de Mayo juntarem-se na reclamação dos cadáveres dos seus filhos desaparecidos. Eu conheço a Buenos Aires de La Boca e do_Barrio de Las Barracas, onde o tango se ouve a cada esquina à medida que nos aproximamos do estuário de La Plata. Eu conheço os porteños que carregaram Maradona em ombros quando finalmente cumpriu o seu sonho e foi transferido do Argentinos Juniors para aquele largo acanhado junto a La Bombonera e não longe de Caminito.

Nino d’Angelo, cantor napolitano, era grande amigo de Diego Armando. Cantou a sua chegada à cidade como se fosse um hino e um presságio: «E si’ venuto tu/ Te stevemo a aspetta’/ Pe’ ffa’ ‘sta grande festa/Che nun s’e’ fatta maje/ E si’ venuto tu/ comme ‘a Befana cca’/ A ‘nce purta’ ‘o regalo/ ca nun se po’ accatta’…» Eis o napolitano profundo que Maradona aprendeu a falar. Foi na língua de Nápoles que marcou, em San Paolo, o penálti suave que meteu a Argentina na final do Mundial de 1990, deixando de fora a Itália. Em seguida perguntou: «Porque torcem vocês, napolitanos, por esta Itália que vos despreza e só agora, neste momento, pediu a vossa ajuda para me derrotar a mim, que estive sempre a vosso lado?» Fez-se silêncio no estádio. Nunca os napolitanos tinham tido de escolher entre a pátria e Deus. «Morire en Buenos Aires/ Sera de madrugada/ Guardare, mansamente, las cosas de vivir/ Mi pequeña poesia de adioses y de balas/ Mi tabaco, mi tango, mi puñado de splin…». Na madrugada de Buenos Aires, o povo chora a partida de um companheiro do divino…

afonso.melo@newsplex.pt