Livros de Nobel condenados à guilhotina

É o mais recente escândalo editorial em Espanha: poucos dias depois da atribuição do Nobel, o agente de Louise Glück decidiu rescindir com a chancela que há 15 anos editava a poetisa. A Pre-Textos terá agora de destruir os exemplares que tenha em stock.

Livros de Nobel condenados à guilhotina

Para um editor, ver um autor do seu catálogo distinguido com o Prémio Nobel pode ser comparado a ganhar um jackpot, um desses golpes de sorte que acontecem raras vezes na vida. Em especial se se tratar de um pequeno editor independente e se o galardoado for uma poetisa relativamente obscura em quem se apostou quando poucos tinham sequer ouvido falar do seu nome.

Jackpot? Golpe de sorte? Não para o editor valenciano Manuel Borrás, um dos protagonistas do mais recente escândalo editorial em Espanha. Ao longo dos últimos 15 anos Borrás publicou na sua chancela, a Pre-Textos, sete dos 11 livros de poesia de Louise Glück. Quando, a 8 de outubro, a poetisa e ensaísta norte-americana foi anunciada como a surpreendente vencedora do Nobel da Literatura de 2020, o editor pensou que, com a inevitável subida em flecha da procura pela sua obra, iria finalmente recuperar o dinheiro investido nas edições anteriores. Mas afinal tudo o que ganhou foi uma tremenda dor de cabeça e uma enorme desilusão. Dois dias depois do anúncio do Nobel, recebeu um telefonema de Andrew Wylie, o agente de Glück a informá-lo de que os direitos dos livros da autora para Espanha iam ser-lhe retirados.

«Antes do Nobel não havia qualquer conflito», garantiu Borrás ao jornal espanhol El Confidencial. «O problema começa quando lhe atribuem o Nobel. Passámos de ser os editores ideais para Louise Glück a ser uma espécie de vilões que não cumpriram». 

Wylie denunciou o contrato com a Pre-Textos alegando que a editora não tinha honrado os seus compromissos e que, aliás, a validade dos direitos já tinha terminado.

«É tão ridículo. Os nossos assessores jurídicos não acreditam nisto. Tão prepotentes que são estes senhores e estão a mostrar-se de uma torpeza absoluta. Dizem que numa ocasião não pagámos a tempo uns adiantamentos. Bom, é verdade que nos atrasámos, mas por que aceitaram depois o dinheiro? Além disso, dizem que no último livro não consultámos a autora acerca da capa… Isto são argumentos que se apresentem? É de rir. As capas que se fizeram nos Estados Unidos são pavorosas», dizia ainda Borrás ao El Confidencial. De resto, a Pre-Textos é conhecida justamente pelas suas edições criteriosas e cuidadas.

O editor de Valência apresenta como prova de que havia um bom entendimento com a autora e o seu agente o facto de ter recebido em maio uma proposta para renovar os direitos. Mas – por causa da pandemia, justifica – não chegou a responder.

Uma reputação temível

Andrew Wylie, o agente de Glück, tem uma reputação temível no meio. Ele próprio filho de um editor, licenciou-se com distinção em Línguas e Literaturas Românicas em Harvard. Antes de se iniciar na atividade atual, publicou um livro de poesia sexualmente explícita. Em 1980 fundou uma agência literária em nome próprio. Hoje, com escritórios em Nova Iorque e Londres, representa mais de mil autores ou legados – muitos dos quais roubados a outros agentes. Uma prática que lhe valeu, no meio literário, a alcunha de ‘Chacal’. Um dos casos mais badalados deu-se em 1995, quando passou a representar o romancista Martin Amis, que trocou a sua agente de mais de duas décadas (Pat Kavanagh, casada com o seu amigo Julian Barnes) por ele.

Borrás decidiu comprar os direitos da obra de Glück dez anos depois de a autora vencer o Pulitzer em 1993, quando lhe chegou às mãos um exemplar de A íris selvagem. Ficou impressionado com a qualidade da sua escrita e decidiu arriscar. Por coincidência, pela mesma altura, a poetisa terá visto em casa de um amigo um livro editado pela Pre-Textos. «Vim a saber, oficiosamente, que Glück lhe perguntou o que teria de fazer ‘para ter um livro tão bem editado’», revelaria Borrás ao El País. Era, aparentemente, um entendimento perfeito: a autora via os seus livros publicados com o cuidado que mereciam; para o editor, aquela aposta era uma afirmação de que «no mundo da edição, há que distinguir entre o oportunismo e a aposta indefetível na literatura».

Obrigado a destruir tudo

Porém, ao fim de 15 anos, este casamento termina da pior maneira com a rutura unilateral comunicada por Wylie. Mas Louise Glück já tem novo parceiro: passará a ser publicada em Espanha pela Visor, de Madrid, editora fundada em 1968 e especializada em livros de poesia.

Como consequência, a Pre-Textos não apenas não pode reeditar os livros de Glück que tinha no seu catálogo como se vê obrigada a destruir todos os exemplares que tenha em armazém. «Quando íamos finalmente começar a recuperar o investimento, que é evidentemente depois do prémio Nobel, é quando estes senhores nos dizem que temos de destruir até os stocks e que de mútuo acordo com a autora vão mudar para outro editor», queixou-se Borrás ao El Confidencial. Glück, a quem tanto agradavam as edições da Pre-Textos, não se pronunciou sobre a transferência. Num mundo cão, o melhor é deixar o Chacal fazer o seu trabalho.