O homem do coração ao contrário

Gaseado na Grande Guerra, com um pulmão quase desfeito e fumando um maço de tabaco por dia, Guillemot bateu Paavo Nurmi.

Toda a gente sabe que o pulmão esquerdo é mais pequeno do que o direito. A natureza teve de encontrar um lugar para encaixar o coração. Para Joseph Guillemot, o assunto complicou-se durante a Grande Guerra. Não lhe bastava o azar de ter vindo ao mundo ao contrário. Isto é, com o coração do lado direito. Depois de andar a chafurdar na lama das trincheiras das Ardenas, o seu pelotão sofreu um ataque-surpresa dos alemães e a exposição ao gás de mostarda destruiu-lhe praticamente o pulmão desse lado. Claro que, jovem como era, acreditava ter o mundo a seus pés e, muito provavelmente, na imortalidade. Fumava como uma chaminé e, nesse aspeto, era tão inimigo de si próprio como os soldados do Kaiser. Nascera em Le Dorat, Haute-Vienne, no dia 1 de outubro de 1899, e era um cinco réis de gente, com um metro e sessenta e cinco, mais uns pozinhos milimétricos. O rancho era da pior qualidade, como se imagina, mas Joseph também não se importava muito com isso porque não era de grandes comezainas, mesmo que as houvesse. Mantinha-se um finguelinhas com pouco mais de 60 quilos e um daqueles moços ativos e divertidos que criam sempre bom ambiente, até no meio de um ataque feroz dos boches.

Dizem os estudiosos que a expressão técnica para ter o coração do lado direito é situs inversus. Confesso que prefiro ter o coração do lado esquerdo, pelo menos era por lá que andava quando senti aquele gelo incomodativo do estetoscópio a percorrer-me as costelas da última vez. No geral, gosto de viver no lado esquerdo da vida e caminhar pelo lado esquerdo da existência. Muitas vezes penso que é isso que me leva a escrever, a escrever sempre, escrever por ser do contra, como dizia o_Manuel da Fonseca, ou escrever para lembrar porque, como dizia por sua vez Milan Kundera, a liberdade é a vitória da memória contra o esquecimento.

Joseph Guillemot corria como uma gazela. Podia ter os pulmões cheios de nicotina e de uma mistura preocupante de etileno e dicloreto de enxofre, mas não se dava por ela. Pelo contrário: quem o visse correr diria que tinha para aí uns dez pulmões distribuídos por aquela carcaça que lhe fazia os ossos verem-se à transparência através da pele. Por isso, ninguém estranhou que ganhasse o torneio de corta-mato organizado pelo seu regimento em 1919 e os 5 mil metros do Campeonato Militar Francês, dois meses depois.

Um ano mais tarde, Joseph já era civil. Ver-se livre daquele pesadelo ascoroso da farda deve ter-lhe dado ainda mais vontade de correr, mesmo que a porcaria da mostarda de enxofre lhe fosse desgraçando a saúde a uma velocidade bastante razoável. Se Deus se vê nos pormenores, o Deus de Guillemot viu-se-lhe pelos alvéolos. A vitória na prova de 5 mil metros nos Campeonatos de França garantiu-lhe a presença nos Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920. E aí, os problemas pulmonares eram de somenos perante a categoria de um adversário especial, o finlandês Paavo Johannes Nurmi, dois anos mais velho do que ele, que viria a acumular, no espaço de oito anos, nove medalhas de ouro e três medalhas de prata olímpicas.

Nurmi tinha dois pulmões saudáveis e o coração no lugar do costume. Não fumava um maço de cigarros por dia, como Joseph, e essa terá sido uma boa razão para bater 22 recordes do mundo em distâncias entre os 1500 metros e os 20 quilómetros. Ninguém se espantou, portanto, que o Fantasma Finlandês tomasse a iniciativa de atacar na máxima força, na tentativa de rebentar com a resistência dos seus dois opositores mais credenciados, os suecos Eric_Backman e Rudolf Falk. Guillemot? Bem, convenhamos: um tipo que funcionava praticamente à força de um só pulmão, ainda por cima danificado, e cujo raciocínio muitas vezes se baralhava por via da exposição ao tal sulfido-bis (2-chloroethyl), não era para levar a sério.

Joseph, por seu lado, levava-se muito a sério. Ao fim de três voltas à pista era o único que se mantinha na cola do impressionante Nurmi. Na curva derradeira, conhecendo de cor e salteado as características do finlandês e a sua falta de sprint final, acelerou alegremente e ganhou o ouro por quatro segundos. A vingança de Paavo Nurmi teria de ficar para daí a uns dias, nos 10 mil metros.

Joseph Guillemot comia como um pisco mas, nessa manhã luminosa de setembro, enquanto fazia horas para se apresentar na linha de partida dos dez quilómetros, abusou do pouco apetite que tinha: bem à francesa, tirou a barriga de misérias de pão e queijo. Entretanto, o rei Alberto I dos belgas, com uma agenda ocupadíssima, pedira a antecipação da prova em quatro horas para poder estar presente. Que diacho! Joseph correu a todo o fôlego dos seus pulmões maltratados, mas não evitou uns arrotos pelo caminho. Nurmi não se deixou surpreender outra vez e ganhou o ouro. A prata foi cair no peito do homem que tinha o coração do lado direito…

afonso.melo@newsplex.pt