Os sobras

Medina não conseguiu ter o rasgo de chamar o vereador Carlos Castro e mandá-lo embora, dando prova pública de que não admitia orgia de vacinas nos Paços do Concelho.

Os sobras são aquelas pessoas a quem sobra a falta de vergonha na cara. Aquelas pessoas a quem sobra a falta de dignidade suficiente para roubarem uma vacina a um idoso ou a um doente. Sobra-lhes em torpeza moral aquilo que lhes falta em caráter. Dentro da classe dos sobras há uns que conseguem ser especialmente desprezíveis, os mais odiados na sociedade portuguesa: refiro-me a toda a sorte de políticos, decisores, chefes de qualquer coisa que, tendo o poder efetivo de mandar, tendo o poder de administrar o bem comum, desviam para si próprios e para os seus doses preciosas de vacinas contra a covid-19.

Tal sucede porque cada frasco dá para seis doses – se, por exemplo, quando o último é aberto só estiverem quatro pessoas, é necessário encontrar mais duas. Sobram duas doses: ou existem mais duas pessoas, ou o frasco tem de ir para o lixo. Mas, obviamente, tudo isto tem de ser devidamente planeado para que não aconteça.

Os sobras são aquelas pessoas que arranjam um ‘esquema’, um ‘arranjinho’ para estarem de bracinho estendido quando há vacinas a mais. Note-se que estamos a falar de um bem escasso, note-se que estamos a falar da dose que salva a vida e evita a morte. A regra é a falta, a escassez, a regra não é a fartura.

Para que sobrem vacinas, já muita coisa teve de correr muito mal porque são a prova provada de falta de planeamento.

As pessoas rejeitam de tal forma quem assim se comporta que se quer criminalizar o comportamento: se a lei passar no parlamento, passa a ser um crime punido com pena de prisão.

Ser um sobra deixará só de ser um aproveitador, um sujeito sem caráter, para passar a ser um criminoso que deve cumprir pena de prisão.

Estes casos que têm acontecido um pouco por todo o país já estão a ser investigados pelo Ministério Público, que já instaurou 33 inquéritos relacionados com irregularidades na vacinação. Um deles é o muito escandaloso caso do vereador da Proteção Civil na Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Castro, que se terá feito vacinar no seu próprio gabinete. Aliás, fez-se vacinar a ele como a outras pessoas, subordinados hierárquicos e não só: a diretora da Higiene Urbana, Filipa Penedos, e outros responsáveis municipais, bem como boys e girls do PS.

Carlos Castro, o responsável máximo pela vacinação em Lisboa, portou-se com dignidade mínima. E, ainda assim, Fernando Medina nunca se pronunciou em público sobre o tema. O homem é presidente da câmara, é comentador na tvi e na rádio renascença, e não conseguiu ter o rasgo de chamar o vereador e mandá-lo embora, dando prova pública de que não admitia orgia de vacinas nos Paços do Concelho. Muitos dias e notícias depois, lá se soube que o sobra, discretamente, tinha pedido a demissão. Medina presidente e comentador não tem nada a declarar.