O manifesto disparate do cancelamento da dívida

Na prática temos uma mecânica muito próxima de dívida perpétua que não paga juros, que não envolve quebrar tratados europeus e evita antagonismos Norte contra Sul que não beneficiam ninguém.

Por Ricardo Seabra, Economista

Há cerca de duas semanas atrás um grupo de economistas, de carregado viés ideológico, decidiu apresentar um manifesto sob forma de carta aberta. Nele procuravam argumentar de forma simplista em prol do cancelamento da dívida pública comprada pelo BCE. É uma sugestão que traria ganhos marginais às condições já extremamente favoráveis de financiamento público e em nome dos quais se estariam a correr sérios riscos ao nível da credibilidade do Euro.

Entre os signatários encontram-se o francês Piketty e o nosso conselheiro de Estado Francisco Louçã. Obviamente que o Bloco veio a reboque opinar, demonstrando uma vez mais toda a sua impreparação no campo económico. O balanço do BCE alberga neste momento cerca de 3 biliões de euros em dívida pública – cerca de 25% do total da Zona Euro – com uma maturidade média superior a 7 anos. Recorde-se que esta dívida na prática não acarreta juros para os respetivos países visto que o banco central transfere esse montante de volta aos cofres nacionais. Ou seja, na prática temos uma mecânica muito próxima de dívida perpétua que não paga juros, que não envolve quebrar tratados europeus e evita antagonismos Norte contra Sul que não beneficiam ninguém.

Mesmo perante estas evidências o BE não perde uma oportunidade para criar ruído, vindo pela voz do eurodeputado José Gusmão apoiar este manifesto disparate e declarando ao Expresso que devia ser permitido ao BCE «fazer livremente o que já fazem bancos centrais» que «estão a imprimir dinheiro». Ora seguramente se tivessem feito o trabalho de casa saberiam que o BCE já imprimiu quase o dobro relativo ao PIB que Reserva Federal (Fed) e Banco de Inglaterra (BOE) – c. 63% contra 35% e 36% respetivamente – estando apenas atrás do banco central nipónico por este ter iniciado a sua epopeia de impressão quase uma década antes – algo que não serviu para evitar a estagnação deflacionista da economia japonesa desde então. É caso para dizer que Gusmão não percebe um BOE desta questão, falando da poltrona fiscalmente confortável de Bruxelas.

O mecanismo atual já permite aos estados financiarem-se a longo prazo a taxas nulas ou praticamente nulas, e reagindo a esse incentivo estes têm vindo a aumentar as suas emissões de dívida nas maturidades mais distantes no tempo. Tudo isto sem as propostas temerárias do manifesto, que propõem um aumento permanente da massa monetária de uma forma que arrisca a credibilidade do Euro precisamente quando a concorrência cresce tanto a oriente como no domínio digital. Para além disso, o risco de inflação aumentaria de forma marcante, inflação essa que é a maior inimiga do rendimento disponível dos segmentos mais vulneráveis da sociedade – o BCE perderia ferramentas de gestão destes riscos caso aceitasse o convite para entrar no casino do cancelamento de dívida.

Caso no futuro os atuais estímulos monetários se revelassem insuficientes, o BCE poderia recorrer a um aumento permanente da massa monetária que seria mais direto e menos contencioso que o cancelamento. Falo do ‘dinheiro de helicóptero’, um instrumento que envolveria a criação de dinheiro que seria depositado diretamente na conta dos cidadãos, desta forma estimulando consumo e investimento. Neste campo não-convencional, prefiro uma estratégia que dê o poder às pessoas ao invés de um programa de cancelamento que provavelmente seria utilizado em prol das clientelas partidárias do costume.