Só os brancos são racistas, de Joana Cabral a Niall Ferguson

Aquela seita branca e patriarcal não estava realmente interessada no progresso da humanidade e na melhoria da qualidade de vida das pessoas. Qual quê? A bomba atómica, o aumento das alergias e da alopecia são bons exemplos da malignidade do progresso tecnológico. O que os moveu foi, sempre, um desejo racista de afirmar a superioridade…

por João Cerqueira

Escritor

Em 2000 participei no acto mais importante das relações entre Portugal e o Brasil desde o Grito do Ipiranga. Juntamente com um amigo, fui incumbido de uma missão delicada: entregar um Pão de Ló da pastelaria Manuel Natário – o grande mestre das Bolas de Berlim – ao escritor Jorge Amado na sua Casa do Rio Vermelho em Salvador da Bahia. Eram grandes amigos, a gula a paixão comum. E assim fui de Viana do Castelo para Salvador com um Pão de Ló debaixo do braço – hoje,  o doce seria inspeccionado pela segurança do aeroporto e talvez só chegasse lá com uma fatia .

Apesar de estar bastante debilitado, Jorge Amado e a sua esposa D. Zélia receberam-nos com muita simpatia e humor: «chegaram os emissários do Manuel Natário» – anunciou D. Zélia para dentro de casa quando nos abriu a porta. Nesse inesquecível encontro, Jorge Amado ofereceu-me, autografados, os três volumes de Os subterrâneos da liberdade e O cavaleiro da Esperança. Fora a primeira ida ao Brasil e ficara com impressão – também influenciado pelos livros do escritor, uma data de caipirinhas e algumas morenas –  de em Salvador existir um harmonia racial rara.

Evoco este encontro a propósito das declarações na televisão da dirigente do SOS RACISMO, Joana Cabral, que afirmou não haver racismo da parte dos negros contra os brancos – logo, também em relação às restantes “raças”. Pensei no tribalismo africano e no massacre de Hutsis por Tutus no Ruanda – «matar baratas», foi a palavra de ordem – , na situação de apartheid dos intocáveis na Índia e na actual violência contra brancos na África do Sul. E pensei ainda na segunda vez que estive em Salvador, na qual tive uma experiência racial que contrariou a primeira impressão da viagem do Pão de Ló.

Certa tarde, vim, sozinho, da praia de Stella Maris – perto da Itapuã da música de Vinicius de Moraes – para o centro de Salvador num autocarro. Então, a certa altura, entra um bando de rapazes e raparigas negros e, enquanto davam pontapés nas portas, começaram a gritar insultos contra os brancos – «branco não é raça, branco devia pagar imposto», etc. Ora sendo o único caucasiano lá dentro e como eles estavam quase em cima de mim fulminando-me como olhar, julguei, na altura, que era mesmo para mim que aqueles insultos racistas eram dirigidos.

Porém, depois de ter escutado Joana Cabral percebi finalmente que eu é que tinha sido racista. Os meus preconceitos raciais e a minha herança histórica colonialista impediram-me de compreender o que se passara. Provavelmente, aquele grupo de negros e negras estava apenas a manifestar – calorosamente, como é próprio do povo brasileiro – a sua indignação contra a má governação de algum político branco, ou quase branco, como Collor de Mello ou António Carlos Magalhães – conhecido, aliás, como o Cabeça Branca.

Eles queriam matar simbolicamente o mau governante, branco por mero acaso.

É por estas e outras, que há que denunciar a agenda oculta do livro de Niall Ferguson, Civilização: o Ocidente e os outros. Fergunson afirma que as  grandes conquistas da humanidade  como os direitos humanos, a liberdade, a democracia e a tecnologia que melhorou a vida de biliões de pessoas foram inventados pelo Ocidente. E depois dá exemplos: Galileu, Newton, Voltaire, Faraday, Darwin, Einstein, e muitos mais. Ferguson nem tenta disfarçar: eis a apologia do homem branco e do patriarcado. Como se não houvesse coisas muito mais importantes do que direitos humanos, electricidade, computadores e vacinas.

Porém, o que Ferguson não conta é o seguinte: aquela seita branca e patriarcal não estava realmente interessada no progresso da humanidade e na melhoria da qualidade de vida das pessoas. Qual quê? A bomba atómica, o aumento das alergias e da alopecia são bons exemplos da malignidade do progresso tecnológico. O que os moveu foi, sempre, um desejo racista de afirmar a superioridade do homem branco sobre as outras “raças” e do patriarcado sobre as mulheres.

Por isso cara Joana Cabral, não leve a mal se algum dia for a Salvador e a insultarem por ser branca – o insulto é de certeza dirigido a Bolsonaro ou até a Jorge Jesus que tantas vezes derrotou o Bahia. E, se por acaso lhe oferecerem aquele livro racista e patriarcal do Ferguson deite-o ao lixo ou troque-o por um Pão de Ló.

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