Adversários ou inimigos?

A sã convivência e a camaradagem são fundamentais e sempre bem-vindas. De que servirá a competitividade desmedida se, de um momento para o outro, tudo se perde?

Na sociedade em que vivemos está implantado o espírito competitivo.

Toda a gente o reconhece e ninguém contesta. Isto pressupõe que haja concorrência, competição e adversários, propostas diferentes que se apresentam e maneiras de encarar a vida de várias formas de acordo com a sensibilidade de cada um. Tudo isto estaria muito certo se não fosse a confusão que se foi fazendo entre adversários e inimigos. Dá ideia até que se está a acentuar essa confusão, contribuindo assim para exacerbar rivalidades doentias que, muitas vezes, acabam em duros confrontos, quando não mesmo em violência. Convém, acima de tudo, separar as águas: adversários não são inimigos, e é preciso desfazer as dúvidas a esse respeito. A história muito curiosa que me foi contada, e que hoje, venho partilhar, ocorrida há muitos anos, mostra precisamente que é possível haver adversários na profissão e camaradagem cá fora, sem inimizade. Vejamos: no velho estádio das Antas, no Porto, jogava naquela altura, no FC Porto, o categorizado guarda-redes Américo, que pertenceu à seleção nacional. Homem de grande estatura, excelente profissional e uma barreira quase intransponível para os adversários, era, em grande parte, o responsável pelo FC Porto sofrer poucos golos, de tal forma, que este destacado guardião dizia, por graça, que oferecia as suas botas ao jogador que lhe conseguisse marcar um golo! Ora, num certo jogo do campeonato nacional, o Sporting Clube de Portugal, deslocou-se ao Porto para defrontar o clube da casa. Em Alvalade destacava-se outro famoso jogador de nome Gonçalves, que corria do primeiro ao último minuto e pelo qual passavam quase todas as jogadas dos ‘leões’. Este craque de verde e branco integrou a equipa que entrou em campo para defrontar os ‘dragões’, sabendo da fama e do ‘prémio’ oferecido pelo guarda-redes portista. O marcador esteve em branco até perto do final, quando num lance banal, a bola foi parar aos pés de Gonçalves, que, à boca da baliza, não desperdiçou a oportunidade e conseguiu bater Américo, dando a vitória ao clube de Lisboa. Caía assim a invencibilidade daquele guarda-redes, que agora só tinha de cumprir a promessa publicamente anunciada. Chegado ao balneário, Gonçalves dirigiu-se calmamente à cabine portista e junto do seu colega nortenho, ficou ali à espera da oferta a que tinha direito. O diálogo terá sido mais ou menos assim: «Vim aqui receber as tuas botas, conforme prometeste», ao que Américo respondeu: «O quê? As botas? Era o que mais faltava!… Então, tu marcas-me um golo e ainda por cima tenho que te dar as botas?». E muito se divertiram com a humorística situação, seguindo cada um o seu caminho.

Por ironia do destino, este jogador, Vítor Gonçalves, veio parar à minha lista de utentes na unidade de saúde onde exerço funções e foi o próprio a contar-me a história, impossível de acontecer nos dias de hoje, onde parece já não haver adversários e sermos todos inimigos uns dos outros. De facto, em todos os setores da sociedade, a tendência aponta para esta triste realidade: cada pessoa é um potencial inimigo e como tal temos de nos defender o mais possível. Veja-se, por exemplo, o que se passa num debate televisivo, seja ele de que área for. Os intervenientes não se coíbem de ofender, agredir ou atropelar os outros, sem respeito nenhum por outras opiniões ou pontos de vista diferentes. Então, pergunto eu: já não é possível haver adversários? Temos que ser forçosamente inimigos? No meu campo profissional a situação é semelhante. Muitos utentes veem nos profissionais de saúde ‘inimigos a abater’ pela desconfiança em que vivem mergulhados e é já rara a semana em que não se tem conhecimento de um caso de violência! Não é por acaso que se fala cada vez mais na medicina defensiva, essencial para proteger os profissionais dos ataques vindos do exterior. E consequentemente o orçamento do SNS vai derrapando também pelo exagero de exames complementares de diagnóstico solicitados para defesa de quem os solicita. Neste contexto, todo o cuidado é pouco. Por outro lado, nós, os médicos que pelo código deontológico devíamos ser todos como irmãos, nem sempre nos comportamos dessa forma e há casos onde esse comportamento é como se fosse de inimigos atribuindo culpas sistemáticas a uns e outros pelas falhas detetadas e deixando uma má imagem junto dos doentes.

Agora que o ano está no seu começo e que estamos a lutar para sair do pesadelo que nos afetou, é uma boa altura de revermos procedimentos e atitudes do passado para preparar o futuro com outro espírito. Podemos ser adversários sem ser necessariamente inimigos. Importa haver tolerância, respeito e condescendência entre as pessoas. Não tenhamos medo de ‘entrar nas cabines dos adversários’. A sã convivência e a camaradagem são fundamentais e sempre bem-vindas. De que servirá a competitividade desmedida se, de um momento para o outro, tudo se perde? Alguém imaginava uma covid-19? E os nossos planos como ficaram? E o que sucedeu à nossa vida? Vale a pena estar em guerra? Um pouco por tudo isto, concluo: adversários? Por que não? Quanto a inimigos, esses dispensam-se.