Coisas sérias com que se anda a brincar

O governo precisou de 15 dias para fazer um PowerPoint que não é mais do que um balão de ar para decidir sobre as verdadeiras medidas. Como miúdos no jardim de infância, enquanto estivermos entretidos a brincar com as cores, não fazemos as perguntas incómodas.

por Sofia Aureliano

Hoje as inquietações são tantas que este texto pode não ter ponta por onde se lhe pegue. Mas nem sempre, na mente, as coisas que nos incomodam saem elencadas de forma arrumada. Aliás, na maioria das vezes, acontece exatamente o contrário.

Há uma vantagem: pode ler-se de cima para baixo que não se perde o norte. Pode, contudo, perder-se a esperança.

1. Fibrose quística. Quem sofre desta patologia vive com uma espada na cabeça, com uma esperança média de vida que ronda os 40 anos e com a consciência da progressão inevitável e dolorosa da doença. É uma sina cruel que empurra famílias para uma pseudo vida, a contrarrelógio, circunscrita a sorrisos no rosto quando a alma está de rastos. Esta é a realidade de cerca de 400 pessoas em Portugal e de quem as acompanha.

Este grupo de pessoas está no fim da linha da vacinação contra a covid-19, porque a 2ª fase é só para quem tem 50 e mais anos de idade com patologias associadas. Já seria um progresso se a esperança média de vida destes doentes chegasse a essa idade. Mas não chega!

Que sentido faz que seja imposto o critério da idade a estas pessoas e que estejam remetidas para o fim da fila, atrás, por exemplo, das pessoas saudáveis com 65 e mais anos, quando têm uma doença grave pulmonar que afeta essencialmente as vias respiratórias?

2. Travar o travão que é um sim à vida. Nos últimos dias, ouviu-se falar mais da fibrose quística por causa do apelo desesperado de Constança Braddell nas redes sociais. O grito angustiado de uma jovem de 24 anos que nos diz “não quero morrer” acabou por forçar o Governo a adquirir o tratamento que, não curando, põe um travão a fundo na doença. Porque esse medicamento existe, apesar de ainda não ter sido aprovado pelo Infarmed. Salvo futuras negociações, custará à volta de 250 mil euros por ano, por doente, ao Estado. E, neste momento, mais 14 pessoas vão conseguir ter acesso a este  tratamento inovador para uma doença genética e rara.

A questão é que estes doentes estão em estado crítico e é por isso que lhes vai ser concedida a autorização especial para aceder ao medicamento. Mas se os cerca de duzentos adolescentes e jovens adultos (porque nem todos podem recebê-lo) que ainda não chegaram a essa fase do “tudo ou nada” também tivessem acesso ao tratamento, enquanto a doença ainda não escalou drasticamente, estaríamos a falar na possibilidade de duas centenas de cidadãos terem uma vida plena e saudável, podendo contribuir ativamente para a sociedade. Porque o medicamento trava efetivamente a progressão da doença e aumenta exponencialmente a esperança média de vida, com qualidade.

Faz sentido que o Infarmed não aprove um tratamento que a Agência Europeia do Medicamento já autorizou em agosto de 2020?

Não é por falta de evidência científica. Por favor, não me digam que é por uma questão financeira, quando só se ouve falar em bazucas, injeções de capital e apoios a fundo perdido. Em opção, vamos falar de Estado Social?

3. Super Task Force. No dia em que os alunos das creches, pré-escolar e 1º ciclo regressaram ao ensino presencial, o ministro da Educação informou que foi informado que a vacinação contra a covid-19 dos professores e funcionários arrancaria no próximo fim-de-semana. Poderão agora ocorrer atrasos devido à suspensão da vacina da Astrazeneca mas, segundo o que parece também ter sido uma novidade para o senhor ministro, já é certo que esta comunidade vai passar a estar integrada no grupo dos prioritários, passando à frente das pessoas com 50 e mais anos e patologias como diabetes, doenças renais, oncológicas, insuficiência hepática, entre tantas outras.

Ficou por esclarecer um pormenor: corrigiu-se definitivamente a argolada e será vacinado o universo total de professores e funcionários ou só serão vacinados os do ensino público e social?

Teremos de perguntar à task force da vacinação, que é quem tutela a Educação por estes dias. Dêmos graças pelo lugar estar ocupado! E vão 300 agachamentos e 200 flexões para Brandão Rodrigues.

Para reflexão partilhada, deixo uma pergunta: Faz sentido que os professores que não cumpram os requisitos de grupos prioritários de 1ª ou 2ª fase sejam vacinados contra a covid-19 antes dos restantes cidadãos, pela profissão que ocupam? Não será também uma questão de saúde pública vacinar os operadores de supermercado, os estafetas, os condutores de transportes públicos, os farmacêuticos e tantos outros profissionais que nunca deixaram de contactar com o público durante toda a pandemia?

4. O retângulo com dono. O retângulo das fases de risco do desconfinamento, protagonista da apresentação do primeiro-ministro que se arrisca a ficar mais famoso que o “famoso R” e que não passa de uma adaptação simplista e colorida da matriz de Eisenhower, é a prova de duas coisas.

Primeiro: a task force para melhorar a comunicação com a população ainda não está a funcionar. Se estivesse, acredito que algum dos sete cientistas comportamentais que a integram teria dito ao senhor primeiro-ministro que quadradinhos às cores e indicação para seguir uma cruz pode servir para geocaching ou caça ao tesouro, mas não será a forma mais adequada de transmitir uma mensagem clara e de orientação comportamental aos portugueses.

Segundo: o governo precisou de 15 dias para fazer um PowerPoint que não é mais do que um balão de ar para decidir sobre as verdadeiras medidas. Como miúdos no jardim de infância, enquanto estivermos entretidos a brincar com as cores, não fazemos as perguntas incómodas.

Por exemplo, alguém sabe exatamente o que acontece se a cruz se mexer e ficar no limbo entre o verde e o amarelo? Ou entre o amarelo e o vermelho? Quem volta a confinar? Acaba-se o postigo? Os cabeleireiros fecham? Os miúdos voltam para casa? As férias da Páscoa começam mais cedo? Fecham-nos por regiões? Recolhemos às 17h?

Uma coisa é certa. Um plano de um plano não é plano nenhum.