Gratas recordações

Se há qualidades que aprecio na minha mulher – e tem muitas! –, duas são estas: a defesa da amizade e a aposta na família

Apesar de gostar imenso de Setúbal, custa-me, sabe Deus quanto, ter de lá voltar, pelas múltiplas recordações que guardo com saudade do tempo em que lá vivi. 

A casa paterna, a escola primária, o liceu, mais tarde o hospital que me deu o estágio e me abriu as portas da atividade profissional, o rio azul onde aperfeiçoei a natação, a serra onde descansava o olhar e me transmitia calma e serenidade no dia-a-dia, os amigos que por lá ficaram… Sem falar, obviamente, naquilo que sinto quando vou ‘visitar’ os meus pais à sua última morada.

No regresso a Lisboa após uma deslocação à minha cidade, ainda com o coração apertado pelo reviver de algumas lembranças, a São, minha mulher, perguntou-me de repente: «Sabes como é que eu gostava de um dia ser recordada?». Hesitei na resposta e ela antecipou-se: «A Amiga». E depois explicou: «Gosto muito dos meus amigos e esforço-me por deixar neles boas recordações». 

Surpreendido, repliquei: «Para mim ainda é mais importante seres uma defensora da família». «É verdade», anuiu ela. «Também tenho apostado tudo na família». 

De facto, se há qualidades que aprecio na minha mulher – e tem muitas! –, duas são estas: a defesa da amizade e a aposta na família. 

E ao ouvir as suas palavras, também me interroguei: como gostaria eu de ser recordado? O que tenho eu feito pela Família (com maiúscula)? Como médico de família, prestes a cessar funções no Estado, gostava de ser recordado pelos meus doentes como um profissional presente nos momentos decisivos, solidário e competente. Porém, a recordação mais gratificante que guardo, é – apesar de todas as convulsões da sociedade – ter estado sempre incondicionalmente ao serviço da vida, como entendo ser a missão de um médico.

O tema da Família, ao qual já me tenho referido várias vezes neste espaço (ou não fosse eu especialista em Medicina Familiar), continua a ser para mim de capital importância – e nunca é demais voltar a abordá-lo. 

No exercício da minha profissão várias famílias me passaram pelas mãos, pelo que me julgo com alguma autoridade para emitir um parecer. Não me restam dúvidas em reafirmar que a Família é uma estrutura básica e vital na sociedade. Direi mesmo ‘o elemento’ mais importante pelo qual nos devemos bater e defender, custe o que custar. 

O conceito de Família tem vindo a ser modificado – e, para além da ‘família tradicional’ (para muitos, uma espécie em vias de extinção), aparecem hoje outros tipos de famílias, como as famílias modificadas, alargadas, monoparentais, etc. Uma coisa, porém, parece-me incontestável: nada de positivo se consegue nesta vida se não houver um suporte familiar sólido e eficaz. 

Nos comportamentos de risco, em especial na toxicodependência, no alcoolismo, na prostituição – que podem evoluir ou não para a criminalidade – encontramos sempre como denominador comum a falta da família. E, se quisermos ir mais além, percebemos que na origem de muitos conflitos sociais está uma disfunção familiar, mais ou menos escondida. É por isso que, citando José Carlos Nunes, «a paz começa na família». O que vale por dizer que sem família nada se constrói. 

Assim, deixo aqui o meu apelo: é essencial investir na Família. Vale a pena apostar tudo na Família. E é escusado pensar que esse dever cabe apenas ao Estado, a quem permanentemente procuramos atribuir culpas pelas falhas neste ou naquele setor. Cada um tem obrigação de colaborar naquilo que a família lhe pede, de acordo com as suas possibilidades, o que nem sempre é fácil (e por vezes chega a ser dramático). 

A propósito, recordo o caso de um reformado que, vivendo só, deixou a sua casa e foi viver com a mãe, passando a cuidar dela como se fosse uma criança. A demência roubara-lhe a autonomia, dependendo totalmente da ajuda do filho. Passaram a viver os dois em condições muito difíceis, com um orçamento apertadíssimo, que mal chegava para a alimentação e para a farmácia. 

Ao ter conhecimento da situação, manifestei-lhe a minha solidariedade: «Admiro muito o seu gesto e aprecio a sua coragem». Ao que ele me respondeu: «Nada faço de extraordinário. Estou a devolver aquilo que recebi». São testemunhos como este (e certamente tantos outros nas mesmas condições) que ficarão para a História e serão sempre recordados como exemplos de dedicação e amor, de que a sociedade tanto precisa. 

Gratas recordações!