Ramalho Eanes e um conjunto de 28 ex-chefes de Estado-Maior das Forças Armadas – ou seja, todos os que estão vivos, com exceção de um – escreveram uma carta contestando a reforma militar em curso.
É um movimento «corporativo» – desdenhou o ministro da Defesa, acrescentando que é «uma agremiação de antigos chefes militares» que tenta «perpetuar a sua influência» .
Ora, atenção: em nenhum país do mundo as questões relativas aos militares devem ser tratadas com ligeireza.
Pela simples razão de que, se são os políticos eleitos que detêm o poder ‘legítimo’, são os militares que detêm o poder ‘de facto’.
A história de Portugal tem sido bem ilustrativa desta verdade.
Os militares possuem outro argumento a seu favor: ao contrário dos políticos, que representam sempre uma fação do eleitorado – e, na prática, dividem a nação em coutadas partidárias –, os militares representam o ‘conjunto da nação’.
Não têm partido – o seu partido é o ‘interesse nacional’.
É por isso que, quando é preciso ir buscar um homem para uma tarefa especialmente sensível, melindrosa e complexa, vão buscar um militar.
O exemplo mais recente é o recurso ao vice-almirante Melo Gouveia para liderar a task force da vacinação contra a covid.
Quando este processo ameaçava mergulhar no descrédito, e as queixas ferviam, nomeou-se um militar e tudo acalmou.
Poucos atribuíram o devido valor a este facto (Guilherme Valente sublinhou-o há quinze dias), mas ele é muito significativo.
Porque, objetivamente, pôs em xeque os políticos.
Mostrou que, em certas situações, os políticos não merecem confiança e é preciso recorrer aos militares.
Refiro outro exemplo, mais antigo. Quando rebentou o escândalo da Emaudio, envolvendo o então governador de Macau, Carlos Melancia, escrevi vários artigos no Expresso dizendo que só havia uma solução: um militar, e, concretamente, o general Vasco Rocha Vieira.
Mas Mário Soares não queria.
Como todos os herdeiros da Primeira República, Soares pugnava por um poder civil e queria ver os militares o mais longe possível da política.
Tentou uma solução civil com Pinto Machado.
Mas a tentativa não resultou – e acabou por se render e nomear mesmo Rocha Vieira.
As coisas acalmaram e pudemos sair do império com honra.
Quando as situações queimam, quando há problemas e desconfianças em qualquer questão crítica, a solução é recorrer a um militar.
Os militares constituem, assim, uma espécie de ‘reserva da nação’.
Mas, até por isso, o poder civil não pode tratá-los com desdém nem com sobranceria.
O país não pode deixar que se abra um fosso entre o poder político e o poder militar.
Sendo os políticos que têm legitimidade para legislar, eles devem ter a inteligência necessária para não fazer leis que encostem os militares à parede.
No estado em que Portugal está, só nos faltava que se abrisse uma guerra entre militares e políticos.
E note-se que o momento é perigoso. Em França, um conjunto de generais na reserva subscreveu um texto dizendo que o país está à beira da guerra civil. Porquê? Porque não houve o necessário controlo da imigração, os muçulmanos tornaram-se uma comunidade fortíssima, em certos locais de França impõem as suas leis, a sua religião e os seus costumes, e há franceses que já se sentem marginalizados no seu país.
Esta tomada de posição teve uma resposta pouco ajuizada por parte de um governante – levando muitos militares no ativo a sair em defesa dos seus camaradas na reserva.
A França enfrenta, portanto, um problema bicudo.
Ora, sendo a França um dos faróis da Europa, não custa vaticinar que em alguns países deste continente vai haver no futuro próximo problemas com a tropa.
A questão portuguesa é diferente: trata-se de uma reação que diz respeito à organização das Forças Armadas e não a algum problema político ou social, como é o caso dos imigrantes.
Mas também sabemos que o mal-estar numa instituição que detém um importante poder pode assumir de um momento para o outro contornos políticos.
O 25 de Abril aí está a prová-lo.
Para já, evite-se o extremar de posições – e a tentação que os políticos poderão ter para mostrar que são eles quem manda.
Neste aspeto, o ministro Cravinho não ajudou nada à solução do problema.
Na instituição militar mexe-se com pinças.
Mesmo em situações de rebelião, Salazar não mandava prender militares: mudava-os de sítio, tirava-lhes um comando, mandava-os para fora – mas não os prendia.
No que respeita a esta reforma das Forças Armadas, não basta que os militares a aceitem: é importante que os militares se sintam identificados e confortáveis com ela.
Seria muito incómodo vivermos numa democracia que, mesmo tendo por si a legitimidade do voto, tivesse contra si o poder militar.