O Serviço Nacional de Saúde (SNS) começa a recuperar de um ano dominado pela resposta à covid-19 mas o ponto de partida não é igual para todos os hospitais, que já tinham diferentes desempenhos. Em alguns casos, as diferenças acentuaram-se e o fosso tornou-se maior. Dados que o Nascer do SOL analisou mostram que em fevereiro havia onze hospitais do SNS onde mais de metade dos doentes estava à espera de cirurgia para lá dos tempos adequados. Há um ano era apenas um.
Um ano de perturbação
Segundo a ministra da Saúde, abril já foi dos meses mais produtivos no SNS. Para trás ficam meses de diminuição nas cirurgias e consultas, tanto nos centros de saúde como nos hospitais, reorganizados para responder à covid-19. Quando se fala em SNS, fala-se do país e de grandes números: num ano normal, os centros de saúde faziam 31,5 milhões de consultas, os hospitais públicos 12,4 milhões de consultas e 628 mil cirurgias programadas – em 2019, foi este o recorde atingido no conjunto dos hospitais, passando pela primeira vez a barreira das 600 mil cirurgias.
No ano passado, foram menos onze milhões de consultas nos centros de saúde e menos 126 mil cirurgias. Todos os anos estavam a ser inscritos no SNS para cirurgia um número crescente de doentes: em foram 724 mil novas inscrições, mais um número recorde e mais 18 mil do que no ano anterior. O SNS estava a fazer mais, mas todos os anos se identificavam assim mais necessidades – o expectável quando se alagar o acesso e numa população envelhecida e cada vez mais doenças crónicas.
Mas os grandes números do SNS, e do ano passado não foi ainda revelado qual foi a quebra nas referenciações para os hospitais e no número de doentes inscritos para cirurgia, diluem as diferenças que existem entre hospitais. Foram esses dados que o Nascer do SOL analisou, usando por base a plataforma de benchmarking da Administração Central do Sistema de Saúde, criada para comparar o desempenho dos hospitais em diferentes dimensões: seja o acesso ou a qualidade.
Comparando fevereiro de 2021 com fevereiro de 2020, constata-se que, mesmo com menos referenciações, tanto no acesso a primeiras consultas como nos doentes à espera de cirurgia dentro dos tempos adequados diminuiu na maioria dos hospitais, mas não em todos. Mas os extremos são agora mais extremos em alguns casos.
A ACSS agrupa os hospitais entre grupos semelhantes: não faz sentido comparar um IPO com um hospital geral, ou um hospital universitário com um hospital de menor dimensão. No grupo dos maiores hospitais, e no que toca a primeiras consultas feitas dentro dos prazos (em que por lei a espera deve ir até aos 150 dias seguidos – 5 meses), uns melhoraram e outros pioraram, mas as diferenças mantêm-se: o Centro Hospitalar do Porto tem o maior cumprimento (94,4% dos doentes vistos em tempo adequado).
O Centro Hospitalar de Coimbra o pior – só 50%. Há um ano estava em último lugar o S. João (48,4%), que no ano de pandemia foi dos que mais melhorou (75,1% dos doentes com consulta dentro do tempo). Já no grupo de hospitais periféricos, Viseu tem o melhor resultado – 75,3% dos doentes vistos em tempo adequado – e o Garcia de Orta o pior (43,6%). Foi um caso em que o extremo se acentuou: no ano passado o lugar era ocupado por Centro Hospitalar do Oeste (45,6%).
Não diferenciando a tipologia dos hospitais, em fevereiro de 2020 havia quatro em que mais de 90% dos doentes tinham tido consulta em tempo adequado e quatro hospitais em que menos de metade estavam nessa situação. Eram 14 hospitais em que mais de oito em cada dez doentes que tiveram primeiras consultas foram vistos dentro dos prazos adequados e 11 em cinco ou menos. Avançado para 2021, os dados publicados pela ACSS mostram 11 hospitais acima dos 80% no cumprimento deste indicador e três abaixo de 50%, com os extremos a aumentarem.
No cumprimento dos tempos de espera para cirurgias o fosso alarga mais. No ano passado, em fevereiro havia seis hospitais com mais de 90% dos doentes à espera de cirurgias dentro dos tempos adequados e apenas um hospital onde menos de 50% dos doentes inscritos ainda não tinham excedido os tempos máximos de resposta (Viseu, com apenas 45,6% dos doentes inscritos em lista de espera para cirurgia ainda dentro dos prazos adequados).
Este ano, em fevereiro, a situação tinha-se deteriorado na maioria dos hospitais e eram 11 aqueles em que mais de metade dos doentes à espera já tinha ultrapassado os prazos recomendados, com os extremos mais acentuados do que em 2020: no Centro Hospitalar do Algarve e na ULS da Guarda, passou-se de cerca de 60% dos doentes operados em tempo adequado para a casa dos 39%. No grupo dos grandes hospitais, o S. João tem o melhor indicador (88,4% dos doentes à espera de cirurgia dentro dos tempos adequados) e o Centro Hospitalar Lisboa Central o pior (43,3%). Há um ano o melhor já era o S. João (75,1%) e Lisboa Central ocupava a última posição (53,7%), mas o primeiro melhorou e o segundo piorou.
«Não há uma varinha mágica, mas pode ir-se mais longe»
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, admite ao Nascer do SOL que era expectável a deterioração do acesso em ano de pandemia, chamando no entanto que os dados refletem o acesso de quem já está no sistema – a principal quebra foi nas referenciações, o que à partida faz com as listas de espera atuais sejam menores do que seriam num ano normal. «As diferenças já existiam, o que a pandemia trouxe na área da saúde como outras áreas é um acentuar das desigualdades que já existiam a nível social e no acesso à saúde.
A capacidade de resposta fica muito dependente dos recursos dos hospitais, da sua capacidade de organização e liderança. Quem é seguido num hospital mais organizado tem mais sorte. A questão que se pode colocar é: o que é que o Estado pode fazer por isso? Não é fácil e não há uma varinha mágica, mas é preciso ir mais longe», defende. «Pelo menos sinalizar o problema e tentar resolvê-lo. Por exemplo abrir mais as portas dos hospitais a doentes que não sejam só desses hospitais, ter um programa de ajuda especial para os hospitais que tenham mais dificuldades na recuperação», propõe.
Miguel Guimarães, que tem defendido o envolvimento dos diferentes setores na resposta à saúde, desde logo para a fase de recuperação da resposta a doentes não covid, insiste que a pandemia deve ser vista como uma oportunidade para repensar «sem preconceitos» em como melhorar o acesso, que já tinha problemas crónicos.
«Temos de pensar no que é que as pessoas precisam e como é que isso se faz, sem estigmas. Pensar fora da caixa. Se não, daqui a um, três, cinco anos, vamos continuar a falar dos mesmos problemas, dos tempos de espera ultrapassados, em vez de estarmos a falar da eficácia que conseguimos ter nos tratamentos de cancro da mama ou na prevenção e conseguirmos melhorar aí. Vamos continuar a falar do doente que está à espera há 100 ou 200 dias por uma consulta de cardiologia ou de outra coisa qualquer. Temos de mudar de paradigma e mudar o paradigma é pensar de forma diferente».