Phoolan Devi. A história de amor e sangue da Rainha dos Bandidos

Sofreu todas as humilhações que uma mulher indiana pode sofrer no mundo rural e praticamente medieval do país; tornou-se uma assaltante plena de revolta e ódio; foi condenada por cerca de 50 crimes e terminou assassinada depois de ter sido eleita como membro do Parlamento

Ela foi a Senhora dos Intocáveis, essa mole de milhões de indianos que ficam tão no fundo do estranho sistema de castas que nem casta têm. A sua vida foi alimentada pelo ódio e pelo desejo de vingança. A sua necessidade de revolta nasceu de um amor digno de romance com Vikram Mallah. O povo chamou-lhe Rainha dos Bandidos. Um nome redutor para os sentimentos fervilhantes que se misturaram por dentro da mulher que nasceu a 10 de agosto de 1963, filha de uma família pobre da zona rural do Uttar Pradesh, o mais populoso dos Estados da Índia. Gorha Ka Purwa foi a aldeia onde viu a luz pela primeira vez. Apesar de pobres, os Devi ainda cabiam na lista infinita das castas, a casta dos mallah, condutores de barcos, e orgulhosos da sua profissão. O pai de Phoolan Devi, Devidin, era um homem modesto dono de um terreno minúsculo onde cresceu uma enorme magnólia e foi aí que decorreu a infância das quatro raparigas que foram fruto do seu casamento com Moola.

Até aqui a história tem o seu quê de idílico mas não tardará a transformar-se em drama de faca e alguidar. Devidin era boa pessoa, mas um fraco, completamente dominado pela vontade do irmão, Bihari. Por seu lado, Bihari era uma daquelas bestas de 48 patas que surgem implacavelmente no seio de todas as famílias de tempos a tempos. Uma das suas atividades mais canalhas era a frequente violação das duas sobrinhas que sobreviveram a uma infância plena de dificuldades. O assunto tornou-se público quando Bihari, apoiado pelo filho Maya Din, tomou a decisão de derrubar a velha magnólia de forma a poder usar a terra para plantar algo que se pudesse comer. Abriu-se uma brecha na família já de si pouco unida e Phoolan revelou todas as violências de que ela e a irmã tinham sido alvo, tanto por parte de Bihari como do seu flho Maya Din. O seu feitio agressivo, levou-a ainda mais longe. Aglomerou um grupo grande de adolescentes naturais da região que haviam sido, como ela, vítimas de abusos sexuais por parte de parentes próximos. As raparigas juntaram-se em redor das raízes da árvore em forma de protesto dias a fio até que foram espancadas sem dó nem piedade pelos sequazes do tio que fez questão de lhe abrir a cabeça com um tijolo com as suas próprias mãos.
Phoolan tinha apenas onze anos. Na tentativa de controlar as suas tendências revolucionárias, o pai casou-a com um pulha de nome Puttilal que passava a vida bêbado e usava e abusava da mulher que tinha menos vinte anos do que ele, sempre que lhe dava na gana. Puttilal tinha uma única vantagem para os miseráveis parentes da rapariga. Vivia a cerca de 40km de distância e mantinha-a convenientemente longe de casa. Convenientemente na sua perspetiva, claro está. Porque a jovem Phoolan fugia constantemente do marido até que este, num acesso de impaciência, declarou que desfazia o casamento “em desgraça”, algo desagradável e fortemente marcante para as mulheres em causa. 

Combatente com causas

A Índia não é um país fácil de entender. E é preciso amá-la profundamente para compreendermos as suas vicissitudes. Como disse um dia Henry Michaux: «Na Índia não há nada para ver. É tudo para interpretar». A forma como Phoolan foi escorraçada de casa do marido foi vista pela família como algo de absolutamente inaceitável. A mãe ficou de tal forma envergonhada com o sucedido que se atirou para um poço e morreu afogada. Algo que deixou a moça impassível. Os seus curtos anos de vida estavam já demasiado cheios de sofrimento para aceitar práticas medievais. O ódio consumia-lhe todo o tempo disponível. Decidiu perseguir o tio levando-o a tribunal por violação e abuso de propriedade alheia. Não foi bonito de se ver. Percebendo desde início que o juiz vinha carregado com preconceitos e que não iria, de forma alguma, tomar posição a seu favor, resolveu abrir as goelas e gritar a plenos pulmões o que pensava do tio, do magistrado, da justiça e dos hábitos arreigados pela população. Foi um desabafo único e indescritível. Plácido, o juiz limitou-se a mandar a polícia retirar Phoolan da sala e espetar com ela umas semanas numa prisão infeta por desrespeito ao tribunal. Não tardou a receber de volta o troco da família. Bihari desta vez não se contentou a rachar-lhe o occipital com um tijolo. Rebateu através da justiça, acusando a sobrinha de se apoderar de vários dos seus bens e um outro juiz, tão preconceituoso como o primeiro, devolveu-a ao cárcere onde, desta feita, foi vítima de violação por parte dos guardas que deveriam vigiá-la.

A personalidade de Phoolan Devin foi, desta forma, moldada por um nunca mais de atrocidades que lhe abriram às escâncaras as portas da criminalidade. Aos 16 anos, estava de volta à liberdade, mas o pai decidira que o lugar dela era ao lado do marido. Por sua vez, o marido não estava para a aturar de forma alguma. A jovem tornava-se dona de si própria.

A aridez e o deserto são marcas da região de Bunddelkhand, onde Phoolan se instalou. Rapidamente voltou às suas atitudes de revolta, sobretudo quando o bando dos dacoitas de Babu Gujar Singh começou a saquear o pouco que havia pelas aldeias em redor. Dacoita é o aportuguesamento de um termo hindustani que significa bandido: daaku. Os ingleses, por seu lado, transformaram-no em dacoit. Quem leu os velhos livros de Emilio Salgari sabe bem do que estou a falar. Como Babu também sabia muito bem de que se estava a falar quando o nome de Phoolan vinha à baila e ficou a saber ainda mais: a rapariga estava disposta a organizar um grupo de resistência para impedir as suas velhacarias. Enviou-lhe uma mensagem curta e grossa – «Se te cruzares no meu caminho mando cortarem-te o nariz».
Mas a tarefa não era tão simples como poderia parecer.

Assumindo o banditismo

Babu Gujar Singh não era um chefe incontestado. Uma fação do seu bando preferia colocar-se sob o comando de Vickram Mallah, um homem da mesma casta que Phoolan que se deixou encantar pela sua personalidade mal a conheceu. Adivinhavam-se problemas e eles não tardaram. Babu fez algumas tentativas para raptar Phoolan, mas esta teve sempre a proteção dos mallahs. Ao ponto de Vickram ter mesmo ameaçado Babu que o mataria se algo sucedesse à moça: «Ela ainda é minha parente, ninguém tem o direito de tocar-lhe».

Babu julgava-se mais importante do que realmente era e estava profundamente enganado em relação à fidelidade dos seus apoiantes. Partiu em busca de Phoolan, apanhou-a, gozou durante alguns dias a sua façanha, gabou-se dela por toda a parte, e levou um tiro em cheio na cara de um nada bem disposto Vickram.O problema da divisão entre o grupo dos dacoitas desapareceu num abrir e fechar de olhos. Vickram assumiu o comando juntamente com o seu bando, os thakurs. E, como num filme de Sandokan, recebeu nos braços a sua prima afastada, afirmando-se ambos como um casal do qual havia muito que temer.

Vickram e Phoolan foram uma espécie de Bonnie e Clyde indianos. A natureza cada vez mais selvagem de Phoolan encontrou na falta de escrúpulos do amante uma parceria ideal. Até que surgiu outra personagem importante nesta história de amor e sangue: Sri Ram. Ram era uma espécie de guru de Vickram e tinham partilhado umas boas temporadas nas nada convidativas prisões indianas. Tal como acontecera no tempo de Babu, os dois homens começaram a exibir publicamente divergências insanáveis. Os thakurs estavam divididos.

No entretanto, a vadiagem do grupo levara-os até a um dos lugares mais odiados por Phoolan, a casa do marido, Puttilal. Uma loucura homicida tomou conta do seu cérebro já de si mutilado. A raiva foi de tal intensidade que entrou em casa de Puttilal a meio da noite, acordou toda a aldeia aos gritos e aos tiros, e fez questão de o esfaquear em público, traçando-lhe com uma lâmina um rasgo que ia do umbigo aos testículos, alertando todos os homens que faria o mesmo a qualquer um que tivesse a indecência de violar crianças. Gestos como estes fizeram de Phoolan tanto uma sanguinária como uma heroína na Índia rural dos anos 70. A liberdade parecia só poder ser conquistada à custa de atitudes da mais crua violência. Sobretudo a liberdade das mulheres que não passavam, na sua maioria, de propriedade dos maridos.

Um rol interminável

Os thakurs tornaram-se abomináveis. Se, de certa forma, os seus atos criminosos eram dirigidos sobretudo contra famílias ricas, não havia um verdadeiro controlo sobre o bando que, de repente, se via governado por dois chefes, Vickram e Sri Ram, dois loucos para os quais a morte era de uma banalidade confrangedora.

A lenda de Phoolan Davin também crescera e criara raízes. Dizia-se que sempre que matava um homem se dirigia a um templo e prestava homenagem a Durga, a deusa da sua devoção. Era a única mulher a fazer parte de um bando de dacoitas e isso não passava despercebido. Uma frase que lhe é atribuída demonstra o ponto de insensibilidade a que chegou: «Se estiveres decidido a matar, mata vinte e não apenas um. Se matares vinte, transformas-te numa lenda; se matares só um, enforcam-te como se fosses um simples assassino».

Voltemos à tal personagem que ganhou importância com o passar do tempo:Sri Ram. Importância e força dentro do grupo de malfeitores. E essa força foi-lhe dada pelo irmão, Lalla Ram, antigo membro dos thakurs que passara uma longa temporada a ver o sol aos quadradinhos e andava agora livre como um pássaro e pronto para as velhacarias em que era mestre.

Explique-se, para que a história fique mais percetível, que Sri e Lalla eram rajputs, ou seja, membros de um grupo de castas muito superiores aos mallah. Por isso não aceitavam de bom grado a submissão às suas ordens. Além do mais, Phoolan não era simplesmente mallah mas era, ainda por cima, mulher. Algo que era bem mais do que podiam suportar. Se o ambiente entre os comandantes era fétido, o ambiente entre a ralé tornou-se absolutamente insuportável. Um rio de fel separava rajuts de mallahs. O desencadear dos acontecimentos era mais do que previsível. 
Certa noite, uma discussão entre Sri Ram e Vickram explodiu com a força de um trovão. As ameaças acumularam-se, cenas de pancadaria multiplicaram-se, Vickram e Phoolan perceberam que tinham deixado de ter controlo sobre os seus dacoitas e desapareceram na escuridão de uma madrugada sem luar. Perseguidos durante quilómetros, acabaram por ser capturados e Vickram foi abatido com uma rajada de balas. Phoolan tornou-se num troféu. Foi carregada por um grupo de homens, completamente atada, até Behmai, a aldeia natal dos irmãos Ram. Voltou aos piores pesadelos da sua vida, abusada, mal-tratada e violada por vários homens que faziam questão de a humilhar publicamente. Com uma corda em volta do pescoço era obrigada a caminhar diariamente nua pelas ruas de Behmai.
Era preciso não conhecer o âmago de Phoolan para acreditar que tudo isto a quebrasse de vez. Três semanas mais tarde, auxiliada por alguns mallahs, evadiu-se. Carregava dentro de si mais ódio do que alguma vez achara possível.
De um momento para o outro, uma série de gente das castas mais baixas estava à disposição de Phoolan e do seu plano de vingança. No final da tarde de 14 de fevereiro de 1981, toda a fúria da Rainha dos Bandidos, como ficou conhecida por muitos, tombou sobre Behmai. À cabeça dos seus assassinos exigiu que lhe entregassem os irmãos Ram. Como estes se tinham refugiado em parte incerta, deu ordem para que vinte jovens rapazes abaixo dos quinze anos fossem decapitados no centro da aldeia.

Atingira-se o ponto de rutura. Por toda a Índia, a polícia abriu a caçada a Phoolan. Durante dois anos andou a monte até que a primeiro-ministro, Indira Ghandi abriu as portas para que se negociasse a sua rendição. Phoolan estava mais cansada de guerra do que a Teresa de Jorge Amado. Exigiu, ainda assim, que para se render garantissem que não seria condenada à morte e que os membros do seu grupo não fossem sujeitos a mais de oito anos de cadeia, além de querer de volta as terras da família. 300 soldados, seguidos por milhares e milhares de pessoas, foram capturá-la em Bhind, local combinado para o aprisionamento. Estava acusada de banditismo, rapto e mais uma lista de 48 crimes. Teve direito a liberdade condicional em 1994 e casou-se com Umed Singh, que fora marido da sua irmã. Entrou para a política através do Partido Samajwadi, representante das castas inferiores. Foi eleita para membro do Parlamento em 1996. À uma e meia da manhã do dia 26 de julho de 2001 foi alvejada com oito balas no peito à porta de sua casa, em Nova Delhi, por três homens mascarados. Até ao último minuto da sua existência viveu sobre o frágil fio de arame do ódio e da vingança.