O transporte aéreo talvez nunca volte a ser o que era. Recordo os esforços do homem para voar, os primórdios da aviação, os heróis, as epopeias, o triunfo dos aviões sobre os zepelins, a prodigiosa multiplicação dos voos comerciais, que atingiram números astronómicos.
Há pouco mais de um século, aviões e zepelins lutavam ombro a ombro pela liderança da aviação comercial; um grande desastre faria, porém, pender os pratos da balança para o lado dos primeiros.
Mas desde aí foi uma ascensão inimaginável. A aviação conheceu um desenvolvimento estrondoso. O transporte aéreo, de início só acessível às elites, democratizou-se a tal ponto que chegou à classe média e depois às classes baixas.
Pessoas vivendo em barracas tornaram-se em todo o mundo clientes das companhias aéreas. Os pacotes de férias para destinos exóticos eram tão económicos que as passagens custavam o preço da chuva. Para os portugueses, ir às Caraíbas podia ficar muito mais barato do que fazer férias ao Algarve.
O crescimento exponencial das viagens de avião parecia imparável e os aeroportos rebentavam pelas costuras… até que chegou a pandemia.
E aí tudo ruiu. A aviação comercial foi talvez o setor mais atingido pelo coronavírus. Porque todos os seus segmentos de passageiros se viram drasticamente reduzidos ou até desapareceram.
Primeiro, logo que foi declarada a pandemia, muitos países fecharam as fronteiras. Os voos para lá e de lá para o exterior pararam de um dia para o outro.
Depois, algumas das pessoas que viajavam mais – ou alimentavam os voos mais caros –, como os reformados dos países ricos em gozo de férias, deixaram pura e simplesmente de viajar. E o mesmo aconteceu com os executivos, pois as viagens de negócios pararam. E os encontros trimestrais, semestrais ou anuais de grandes empresas, os congressos de médicos, engenheiros ou cientistas, outros convívios de grupo que habitualmente se realizavam em paragens longínquas, tudo isso foi suspenso. Pior: generalizou-se o teletrabalho e as reuniões presenciais passaram a ser feitas por videoconferência.
Ora, quando é que tudo isto voltará ao normal? Eu digo: nunca. Muitos reformados demorarão muito tempo antes de voltarem a meter-se num avião, se voltarem. Até porque terão medo de viajar para destinos que não conhecem bem. Por outro lado, o teletrabalho veio para ficar. E muitos encontros de negócios e reuniões deixarão de ser presenciais. A crise afetou grande parte do tecido empresarial e há que poupar naquilo que não for imprescindível.
Por tudo isto, acho que nunca voltaremos ao passado. Houve hábitos que mudaram e não vão voltar para trás.
Mas outro fantasma paira sobre a aviação comercial: os atos criminosos. O que aconteceu esta semana era impensável: um Estado organizar o desvio de um avião para prender um adversário político. Já se tinham visto desvios de aviões feitos por organizações terroristas. Nós próprios, portugueses, oferecemos ao mundo o primeiro pirata aéreo – quando, em 1961, Hermínio da Palma Inácio desviou um avião da TAP para lançar panfletos sobre Lisboa. Mas um Estado fazê-lo, é uma enorme novidade. Daqui para a frente, qualquer figura detestada por qualquer razão, seja um oposicionista ou um chefe de Estado, pensará duas vezes antes de entrar num avião. De facto, mais fácil do que organizar um atentado contra alguém, será desviar o avião onde viaja e obrigá-lo a aterrar onde mais convier.
E os episódios inéditos envolvendo aviões comerciais têm vindo a multiplicar-se. Há tempos foi uma equipa de futebol que morreu porque o avião em que viajava ficou sem combustível; depois (ou antes) um piloto deprimido apontou o avião contra uma montanha, conduzindo todos os passageiros para a morte. E isto para não falar nos aviões que podem ser usados como bombas para destruir alvos, como sucedeu nas Torres Gémeas.
Enfim, tudo isto pode provocar na população um clima de medo que, associado às consequências da pandemia, afastará muita gente dos aviões.
Repito: ou me engano muito ou o transporte aéreo já não voltará a ser o que era. O turismo está a mudar. O trabalho está a mudar. O marketing das empresas está a mudar. O terrorismo pode estar a mudar. E o setor da aviação vai sofrer imenso com estas mudanças.
Até por isso, a ‘nacionalização’ da TAP foi uma péssima ideia. E planear agora um novo aeroporto de Lisboa será uma temeridade. Planear com base em quê? Na evolução que vinha de trás? Mas se poderá haver alterações de fundo nessa evolução, de que servirão esses dados?
Sempre fui a favor das obras – ou não fosse arquiteto.
Mas, francamente, neste tempo de enormes incertezas, não sei como se poderão fazer cálculos que sustentem o projeto de um novo aeroporto.