Ler para saber, ler para ser

1. A experiência de ‘ver’ depois de se ‘ter lido’ é uma epifania. Num movimento de vaivém, a experiência de se ‘ter visto’ alarga, afina, depois, a da leitura que se fez.  Por isso, a compreensão das coisas (que o saber tradicional perdido nalgum grau proporcionava), a visão da vida, são radicalmente diferentes no ignorante…

1. A experiência de ‘ver’ depois de se ‘ter lido’ é uma epifania. Num movimento de vaivém, a experiência de se ‘ter visto’ alarga, afina, depois, a da leitura que se fez. 

Por isso, a compreensão das coisas (que o saber tradicional perdido nalgum grau proporcionava), a visão da vida, são radicalmente diferentes no ignorante e no letrado. 

Quando fui a primeira vez a Atenas, acabara de ler a obra iluminante de André Bonard, A Civilização Grega. Lia-a na tradução admirável de um Saramago empolgado por ela (hoje na edição da Almedina).

Estudante e amador da cultura clássica, se não tivesse lido Bonard não teria visto, todavia, o que vi quando subi à Acrópole. Em vez de pedras, irradiação de luz! No Partenon vi geometria (matemática), harmonia erguida em pedra, o milagre de civilização que ali se manifestara cinco séculos a.C., no cruzamento do mundo euro-asiático.

Essa virtude da leitura, do conhecimento, do olhar iluminado com que depois se apreende a realidade, vivi-a também em muitos anos de leituras sobre a China e, depois, no acaso que me levou ao convívio com aquele povo. Gente de uma resiliência sobre-humana a tantas adversidades, e de uma tolerância que a levou a aceitar (e a querer e viabilizar, porque em tudo dependíamos deles) durante 500 anos a presença dos portugueses, que continua a receber. Povo que me aceitaria a mim como um deles – desejo maior do imigrante – na abertura que me animava de descoberta e compreensão da índole e costumes daquele mundo outro, tão diferente, mas tão igual nas aspirações humanas duma Humanidade que é uma.

Macau, realidade singular no mundo e na História – como logo compreendeu e disse Umberto Eco, na experiência de descoberta que ali partilhei com ele durante duas semanas inesquecíveis. Macau exílio para refugiados de todas as perseguições e guerras do mundo, como ali os conheci. Cidade mítica, que perdura hoje para mim (como para tantos que ali viveram) num lugar qualquer entre a memória e a imaginação. 

2. Parece certo que a regressão cultural galopante a que se assiste se deve (ou é, no mínimo, afim, numa relação implicante) ao esvair sempre crescente da leitura. Determinado por um conjunto de fatores, exógenos alguns deles, mas consentido, praticado entre nós pelas instâncias que lhe deviam resistir: a universidade e a escola que esta determina e arrasta. Não formando – hoje ainda menos – as elites letradas de que o país necessita, tudo nele vai morrendo à míngua.
É à universidade que se deve também, aliás, o desconhecimento inaceitável de tantos anos sobre a civilização e a história chinesas – logo, o olhar vesgo sobre a realidade atual da China. 

E assim se perde o muito que Portugal podia hoje invejavelmente beneficiar dessa ligação singular multissecular. Uma história, uma solidariedade recíproca tão admirável como, num momento terrível para a China e para os chineses, os portugueses também ali lhes deram. Memória que aqui se desconhece, mas que a China não esquece.