Barry Strauss: “Uma das chaves do sucesso de roma foi estar aberta ao talento de fora”

Especialista na história da Roma Antiga, Barry Strauss explica por que admira Augusto, apesar de o considerar um homem implacável, por que considera Nero um forte candidato a sofrer de ‘um distúrbio de personalidade’ e por que tem em Marco Aurélio o seu imperador favorito.

Classicista, professor de Humanidades na Universidade de Cornell (estado de Nova Iorque) e especialista em História Militar, Barry Strauss é autor de vários livros sobre o período clássico. Títulos como Battle of Salamis: The Naval Encounter That Saved Greece—and Western Civilization, sobre a batalha naval de Salamina, Masters of Command: Alexander, Hannibal, Caesar and the Genius of Leadership ou The Death of Caesar: The Story of History’s Most Famous Assassination têm marcado presença nas listas dos livros do ano da imprensa norte-americana.

Mas antes de aqui chegar, diz-nos, Barry conquistou o respeito dos seus pares escrevendo estudos académicos destinados aos especialistas. Conversámos com ele por skype, a propósito de Dez Césares (Bertrand Editora), uma história do Império Romano através das vidas e feitos dos imperadores, cujo segundo volume (De Adriano a Constantino) acaba de ser publicado em Portugal.

Está em Ithaca neste momento?
Sim. Fica no Estado de Nova Iorque, não na cidade.

Na Europa vemos os EUA como um país de modernidade, de tecnologia. E depois encontramos estas cidades americanas chamadas Ithaca, Syracuse, Athens, etc. De onde vêm estes nomes?
Depois da Revolução Americana [1775-83], no século XVIII, a Grécia e Roma estavam muito em voga como modelos de repúblicas. Por isso foram dados a muitas cidades nomes como Rome, Sparta, Athens e, neste caso, Ithaca [ilha do Mar Jónico de que Ulisses era rei].

Falemos então do seu livro. Na Roma antiga as palavras imperador e césar eram sinónimos?
Originalmente não, mas na prática acabaram por se tornar. Imperador vem de ‘imperator’, um termo militar que designa um comandante vitorioso. E embora os césares fossem tratados por ‘imperator’, esse não era o seu verdadeiro título. Era mais adequado chamar-lhes ‘Augusto’ ou ‘César’, que começou por ser o nome de uma família mas se tornou um título honorífico. O facto de usarem um título que fazia lembrar um rei deixava os primeiros césares, especialmente Augusto, muito nervosos. Por isso Augusto fazia-se chamar ‘princeps’, o primeiro cidadão, ou ‘o primeiro entre iguais’.

O título de imperador é uma invenção romana? O que distinguia o imperador do rex, por exemplo?
Essa é uma excelente pergunta. Os romanos não tratavam ninguém por rex, isso era considerado um insulto. A República tinha sido fundada precisamente por meio de uma revolta para pôr fim ao governo do rex. Imperator, em certo sentido, era menos ofensivo, porque era um título militar. Aliás, nem era muito atrativo para os romanos comuns, porque não era um termo político.

Na medida em que o imperador era um governante, um cargo político, era menos ‘imperator’ do que ‘Augusto’ ou ‘César’. Os romanos acabaram por perceber que o imperador era um monarca, mas demorou algum tempo até se sentirem à vontade esse epíteto. Digamos que, no fundo, era politicamente correto evitar essa expressão.

Às vezes tendemos a pensar em Augusto [Júlio César Octaviano], o primeiro imperador, como tendo tido a vida facilitada porque era herdeiro de César. Mas o facto é que César foi assassinado. E é impressionante como Augusto era jovem.

Tinha apenas 19 anos quando se envolveu na luta política.
É verdade. O seu caso não é completamente inédito. Os romanos em geral não tinham grande respeito pelos jovens, mas houve outros exemplos de jovens que se impuseram. Cipião, o Africano, por exemplo, o general que derrotou Aníbal, era muito jovem no início da sua carreira.

E, claro, temos o precedente de Alexandre da Macedónia. Só que, além de ser muito novo, Octaviano tinha contra si o facto de não pertencer por inteiro à nobreza romana. A sua mãe vinha da família de César, mas o pai dela não era nobre, e o próprio pai de Octaviano também não. Isso não o ajudou.

Olhamos para o século de Augusto [como lhe chamou o historiador Pierre Grimal] como um período de paz e tranquilidade, quer por causa da Pax Romana, quer porque Augusto morreu na cama e não de morte violenta, como o seu pai adoptivo, Júlio César. No entanto, Augusto deve ter sido um homem implacável.
Concordo, acho que de um modo geral ele era uma pessoa implacável. E a sua ascensão ao poder foi especialmente brutal. Conquistou o direito a suceder a César através de vitórias em guerras civis sangrentas e não hesitou em eliminar os seus opositores na sua ascensão ao poder. Dezenas, talvez centenas de senadores foram mortos às suas ordens.

Ao contrário do que de uma forma geral acontece nas monarquias, o processo de sucessão em Roma não era linear. Isso torna o estudo da política romana especialmente interessante?
Diria que por vezes sabiam, mas de uma forma geral você tem razão, não sabiam quem ia ser o próximo imperador. E sim, isso torna o estudo da política romana mais interessante, porque temos de juntar as várias peças do processo que leva à nomeação do novo imperador. Por vezes esse processo era suave e feito com inteligência, outras vezes o novo imperador emerge de uma guerra.

Até que ponto podemos confiar nas fontes da época? Historiadores como Tácito, Dião Cássio ou Suetónio são imparciais?
Não. Nenhuma das fontes antigas é imparcial. Como historiadores, temos de ter uma relação cautelosa com as fontes, temos de pô-las sempre em causa, de fazer o contraditório. Nunca podemos partir do princípio de que estão a dizer a verdade, há que procurar a intenção que pode estar por trás de cada afirmação. Às vezes conseguimos descobri-la, temos provas que nos permitem chegar a uma conclusão – as provas da cultura material são de uma importância tremenda.

Outras vezes, o melhor que conseguimos é dizer: ‘Eles dizem isto, não confiamos neles por estas e estas razões, mas não temos a certeza do que aconteceu’. Outras vezes, ainda, é uma simples questão de pragmatismo: ele dizem que as coisas se passaram assim e assado, mas isso não é simplesmente possível.

Falou de cultura material. A arte dos diferentes períodos vai refletindo a personalidade e o gosto do imperador no poder?
Certamente reflete os respetivos programas políticos. Quando Octaviano se tornou Augusto – e, portanto, soberano absoluto de Roma – pôs em marcha um programa de classicismo. Queria dizer que Roma vivia um período de paz e olhou para o Oriente, olhou para Atenas e para alguma arte helenística. Augusto não é exatamente um monarca, mas tem algum do esplendor e dignidade dos monarcas orientais. Ao mesmo tempo, quer transmitir a mensagem de que a sua Roma é a Grécia de Péricles renascida. Tal como no período de Péricles Atenas viveu a sua época clássica, assim na época de Augusto Roma tem o seu período clássico.

Calígula, Nero e Cómodo são alguns dos imperadores mais infames da história de Roma. Mas todos eles tinham o sangue das melhores famílias a correr-lhes nas veias. Podemos dizer que bom sangue deu maus imperadores?
Acho que uma das chaves do sucesso do Império Romano foi estar aberto a pessoas de fora. Depois de Nero, penso que apenas um ou dois imperadores eram membros da velha nobreza romana. De uma forma ou de outra eram quase todos outsiders. Cómodo era filho de imperador e neto de imperador, portanto foi uma exceção – não um membro da velha aristocracia, mas um membro da família imperial.

Mas muitos dos imperadores vinham de fora. Essa era das vantagens de Roma e foi uma das razões por que o império durou tanto tempo, porque tinha uma elite que era aberta ao talento. Muitas vezes, infelizmente, aberta ao talento militar mais brutal, essa era uma forma de chegar ao topo. Ainda assim, era aberta aos outsiders, ou, como diz, a sangue novo. Isso foi importantíssimo.

Como nota no seu livro, o reinado de Nero não foi inteiramente negativo. A História foi injusta para com este imperador?
Sim. A História costuma ser escrita por homens da elite – como Tácito –, que representam o ponto de vista do Senado Romano, que era uma oligarquia muito restrita, e não são justos do ponto de vista do povo romano comum. A forma como o povo romano olhou para Nero no início era muito diferente daquela como ele era visto pelas elites.

No seu livro, aliás, faz uma distinção entre o ‘Nero bom’ e o ‘tirano’ que viria a revelar-se. 
Sim, Nero era um jovem inteligente e estava muito bem aconselhado. No início prometeu pôr fim aos abusos e cumpriu o prometido. Mas depois o seu caráter acabou por vir à superfície. 

Qual lhe parece que foi a sua maior perversidade?
Há tantas! [risos] Acho que o homicídio da própria mãe foi certamente um dos pontos mais baixos, embora haja outros, como a perseguição dos cristãos – se é que ele de facto perseguiu os cristãos (eu acredito que sim, mas há académicos que discordam). Ou a sua incompetência e negligência, que levaram à revolta na Judeia. Ou a sua inconveniente viagem pela Grécia, em que competiu nos Jogos Olímpicos e obrigou os júris a darem-lhe todos os prémios. Tudo isso era considerado abaixo da dignidade do imperador.

Não quero fazer psicologia barata, mas muitos desses pontos baixos que referiu parecem resultar de um profundo narcisismo.
Eu também não sou psicólogo, mas acho que tem razão. Nero parece ser um forte candidato a alguém que sofre de um distúrbio de personalidade.

Também parece surpreendente que Cómodo se tenha tornado um dos imperadores mais caprichosos e arbitrários. Sendo ele filho do imperador-filósofo, Marco Aurélio, cujos pensamentos e conselhos continuam a ser lidos e seguidos quase dois mil anos depois da sua morte, como foi isso possível?
Como sabe, grandes estadistas e grandes pensadores não são necessariamente grandes progenitores. Acho que é o que acontece neste caso. Platão e Plutarco comentaram como tão poucos dos grandes homens da Grécia Antiga tiveram grandes filhos.

É compreensível que estivessem ocupados com outras coisas. Por outro lado, é natural que os filhos se sentissem uns privilegiados, o que os tornou arrogantes. Achavam que tinham direitos especiais. Cómodo é na realidade o primeiro imperador que cresce e é educado no palácio, como filho do imperador. Ninguém antes dele tinha tido essa experiência. Houve outros que eram filhos de imperadores, como Tito e Domiciano, mas o seu pai só se tornou imperador numa fase mais adiantada da vida. Tibério sucedeu ao seu pai adoptivo, Augusto, mas quando Tibério era jovem Roma não tinha imperador. Por isso Cómodo é o primeiro e não dá grande crédito à experiência…

Tendemos a pensar no César como uma figura quase omnipotente, um misto de imperador e deus. Mas houve ocasiões em que foram afastados do poder. Isso deve levar-nos a reconsiderar essa ideia do César todo-poderoso?
Os Césares eram de facto muito poderosos, mas, como diz, também eram vulneráveis à oposição e às conspirações no Senado ou entre os soldados… Muitos foram assassinados, particularmente no século III. E de modo algum eram imunes à crítica e à contestação. Talvez esse fosse um dos pontos fortes do sistema romano.

Os imperadores não eram autocratas absolutos. Havia contrapesos ao poder. Penso que uma das virtudes do sistema que Augusto montou foi que, embora o poder do Senado fosse limitado, ainda havia margem de manobra para estes aristocratas ricos, devotados à causa pública. Esse corpo de elite servia para ratificar e vigiar o imperador.

Comprei há dias um livro intitulado Invisible Romans, conhece?
Não estou a ver…

O subtítulo é: ‘Prostitutas, foras-da-lei, escravos, gladiadores, homens e mulheres comuns… que a História esqueceu’. Escrever apenas sobre o pináculo do poder não pode dar uma ideia distorcida da vida no império romano?
Sem dúvida. Se só olharmos para o pináculo do poder ficamos com uma ideia muito distorcida do que era a Roma Antiga. No meu livro procuro, sempre que posso, dar alguns vislumbres de como era a vida dos romanos comuns e das suas experiências.

Uma das coisas boas da história de Roma são as descobertas que os académicos têm vindo a fazer. Através da combinação de uma leitura cuidadosa das fontes, do estudo das inscrições, da epigrafia e das riquíssimas evidências arqueológicas, temos uma panorâmica muito completa da vida do romano comum. E claro, ainda temos o bónus das cidades enterradas do Monte Vesúvio, Pompeia e Herculano, dão-nos um conjunto de informação notável, e que a cada dia se torna mais rico.

Os arqueólogos estudam, por exemplo, o lixo dessas áreas, e obtêm muita informação a partir daí. Temos milhares e milhares de sandálias, que nos dizem muito sobre a saúde das pessoas através dos padrões de desgaste. Para não falar do enorme repositório de documentos em papiros, principalmente do Egipto romano, que nos proporcionam uma janela para as vidas dos romanos comuns. Concordo absolutamente: a história romana não é de modo algum um assunto exclusivo da elite romana, e muito menos dos imperadores.

Visitou algumas dessas escavações?
Sim, estive nas escavações ao longo da Muralha de Adriano [Norte de Inglaterra], que são espantosamente interessantes. Até porque oferecem um retrato de uma sociedade multiétnica e muito diversa, com muita gente vinda de fora do Império para se servir nas guarnições militares. É considerada a comunidade mais diversificada e multiétnica do Reino Unido até ao século XXI. E passei bastante tempo em Itália, tive a sorte de poder fazer muitas visitas aos sítios arqueológicos à volta do Vesúvio. Mas um pouco por toda a Europa e Médio Oriente há museus que possuem artefactos que nos proporcionam vislumbres do quotidiano dos romanos comuns.

Este seu livro foi traduzido em várias línguas e destina-se ao leitor comum. O facto de escrever para o grande público é encarado com alguma suspeição pelos seus colegas mais rígidos?
Alguma. Mas não mais do que isso. Na academia americana, nos últimos 20, 30 anos, escrever para o grande público tornou-se cada vez mais habitual, e mais valorizado. Devo assinalar que nos primeiros anos da minha carreira escrevi obras muito especializadas que não eram para o leitor comum. Acho que conquistei o respeito dos meus colegas dessa forma antes de começar a escrever livros mais populares. Em Itália chamam-lhe ‘divulgazione’… [risos]

Há algum imperador romano que admire acima dos outros, algum favorito?
Admiro muito Marco Aurélio como ser humano e como pensador. Acho que infelizmente foi um imperador falhado. Não estava preparado para o que o esperava na fronteira, as guerras e a epidemia causaram-lhe grandes problemas. Não me parece que o seu reinado tenha sido um sucesso, mas como ser humano foi extremamente admirável. Como imperador, penso que teria de responder Augusto.

A sua capacidade para criar um império sobre alicerces estáveis é notável. Julgo que é uma das grandes figuras da história, embora não fosse tão boa pessoa como Marco Aurélio. Foi bastante brutal e traiçoeiro. Mas se quiser um caso de estudo sobre liderança acho que dificilmente algum pode ser mais adequado do que o de Augusto.

E algum que lhe cause particular repulsa?
[risos] Tantos! Não sou fã de Cómodo, Nero ou Calígula. Embora não fossem completamente más pessoas, não são figuras que possamos admirar. E depois há o caso de Adriano, que acho fascinante, porque é uma mistura. É uma combinação de coisas boas e de coisas más. Edward Gibbon [historiador inglês do século XVIII] disse no Declínio e Queda do Império Romano que Adriano era uma combinação entre um pensador e um tirano, e eu acho que acertou em cheio.