Inês Pedrosa: “Procuro descobrir quem sou através do espelho das personagens que crio”

O tom azul caribe da camisa de seda mistura-se com o azul mar dos seus olhos. É através deles que Inês Pedrosa observa o mundo para depois o desconstruir e perceber, por entre as personagens e histórias que faz nascer. Recebeu-nos na sua casa e abriu a porta do seu universo literário, revelando-nos algumas partes…

Quem é a Inês Pedrosa por detrás da jornalista, escritora, tradutora e comentadora?

[risos] Não é uma pergunta fácil e acho que qualquer resposta que eu lhe der vai ser sempre muito superficial porque, na realidade, não dedico tempo a essa introspeção. As pessoas que se dedicam a escrever romances, como eu, pensam pouco nisso porque lhes interessa mais perceber o mundo. Quem é que eu sou? Se calhar alguém com uma curiosidade contínua, com uma espécie de deslumbramento com a natureza humana, com o mundo e que gosta de olhar para ele como um brinquedo a desmontar. Penso que aquilo que pensamos de nós próprios, na realidade, não é aquilo que nós somos, portanto é sempre mentira. Como eu tenho o lado de jornalista, não gosto de dizer coisas que não são verdade [risos]. Mas sou uma pessoa com muita noção de que, dentro do mundo complicado em que vivemos e que não é mais complicado que todos os outros mundos anteriores, sou otimista. Procuro relativizar o mal e agigantar o bem. Tenho muita consciência do privilégio que tenho por ter nascido em Portugal no século XX e viver no século XXI. Portanto, acabo por ter uma visão positiva e sou alguém que pensa pouco em si, penso pouco em lamúrias daquilo que poderia ter sido. Vivo para aquilo que pode ser e mais virada para o futuro. À parte disso, sou um bocadinho obsessiva, bastante ansiosa, perfeccionista… São coisas que me dou conta no dia a dia. Sou amiga dos meus amigos e alguém que vive a tentar transformar um bocadinho o mundo à medida das minhas possibilidades… Torná-lo um bocadinho melhor. Quando for embora, gostava de poder ir com a certeza de que fiz alguma coisa para melhorar um bocadinho o mundo à minha volta.

Numa entrevista à RTP, em 2002, ano em que publicou o seu livro Fazes-me Falta, afirmou que ainda ‘estava a tentar ser escritora’ e que escritores eram António Lobo Antunes e Agustina Bessa-Luís. Depois de todos estes anos, de todas as obras publicadas e prémios ganhos, já se sente tão escritora como eles?

[risos] Bem… Como eles… Como a Agustina Bessa-Luís acho que não há ninguém… Uma pessoa que me faz uma falta enorme! Gostava tanto dela e ela tanto de mim… Tivemos uma relação muito terna e devo-lhe muitas atenções. Foi ela que apresentou o Fazes-me Falta e porque se ofereceu para o fazer… Eu não teria a lata de a incomodar para isso. Tem graça porque ela vivia no Porto e ela é que me disse: ‘Não quer que lhe apresente o livro?’. E eu: ‘Mas é em Lisboa e eu já combinei que é no Lux, uma discoteca…’, ao que ela me respondeu, ‘Adorava conhecer essa discoteca, é um pretexto para eu ir a Lisboa!’. E veio, foi encantadora. Sempre teve muita generosidade comigo. Bem, o que eu queria dizer na altura era que não é com dois ou três livros que uma pessoa se intitula escritor. Hoje em dia, ainda tenho dificuldade em falar de obra. Ouço pessoas muito mais novinhas do que eu e com muito menos trabalho feito a falarem ‘da minha obra e a minha obra…’,  acho isso um bocadinho pretensioso. Eu nunca direi ‘a minha obra’, pois se ela merecer ser obra, alguém o há de dizer, ou o tempo o há de dizer. Eu digo que é o meu trabalho, mas acho que sim, porque tenho um trabalho mais sólido do que aquilo que tinha na altura, já se passaram muitos anos e já escrevi muito mais livros. Quando era pequenina e me perguntavam aquilo que eu queria ser, eu dizia sempre que queria ser escritora – era o que eu me sentia –, mas acho que uma pessoa afirmar que é um escritor, revela um bocadinho de arrogância e é um bocadinho desnecessário. É só isso! [risos].

O que é que fica na memória da infância em Tomar? Nessa altura, o que é que a pequena Inês gostava de fazer, quais eram as suas brincadeiras preferidas?

Eu tive uma infância feliz! Vivi em Tomar relativamente pouco tempo, pois vim para Lisboa aos cinco anos, mas como lá tinha a minha família mais próxima passava lá muito tempo. Ia no Natal, na Páscoa, nos Verões e em muitos fins de semana… Adorava brincar com os meus primos e tenho uma memória muito bonita, doce e forte do meu avô materno que até está registada no meu primeiro romance. O meu avô era um militar que gostava muito de ter estudado e não conseguiu ter meios para isso, portanto fez um esforço brutal para que a minha mãe o pudesse fazer.  Adorava literatura e história, era um autodidata! Viajou muito pelo mundo com a tropa e gostava muito de ler autonomamente, porque não tinha educação nenhuma. Lembro-me que ele me levava a mim e ao meu irmão a andar de barco no rio Nabão, e recitava de cor poemas de Camões. Mas a lírica quase completa! [risos]. Portanto, essa ideia muito forte de ele ir a remar e a recitar Camões e a música dos poemas como som de fundo, é das primeiras impressões especiais que eu tenho e, quando me perguntam o que é que me levou à escrita, sinto que a influência mais direta foi mesmo a deste meu avô. Ele era um homem tão curioso, com tanto amor pelas palavras e pela cultura… A minha avó ralhava com ele por ter ido acabar o liceu quando já se estava a reformar. Era uma coisa muito mal vista naquele tempo e ela era muito mais conservadora. Quando a minha mãe veio estudar para Lisboa, a minha avó também considerava feio uma menina vir estudar assim para a capital. Queria que ela estudasse ali, na melhor das hipóteses no Ministério Primário, ou então que fosse funcionária dos correios, uma carreira linda para uma mulher [risos]. Mas o meu avô insistiu e a minha mãe, com muito esforço financeiro, foi para a Faculdade de Ciências em Lisboa, onde tirou Matemática.

A Inês acabou por ter uma educação diferente daquela que era dada às raparigas naquele tempo. Nunca foi obrigada a aprender a cozinhar, a bordar e aos 15 anos já ia acampar com os seus amigos. Como é que acha que isso teve impacto no seu crescimento? Sentia-se diferente das suas amigas?

Eu realmente tinha muita admiração pela minha mãe que me dizia para eu não perder tempo e para estudar. Muitas vezes era eu que, enquanto criança, queria ir para a cozinha ajudar a demolhar ervilhas, a arranjar feijão verde… Achava piada a essas coisas. E quando a via a arranjar meias, ouvia: «Isto não é para tu aprenderes, porque se eu não soubesse arranjá-las, comprava outras. Tu não vais ter esta vida!». Foi um privilégio ter uma mãe que dizia desejar ter nascido no ano 3000, que estava muito à frente. Ela sempre trabalhou e, nessa altura, início dos anos setenta, trabalhava numa área muito masculina, dirigia um centro de informática e foi das primeiras pessoas a trabalhar com computadores. Quando eu tinha 12 anos, deu-se o 25 de Abril, o que também acabou por influenciar essa minha educação. Depois do 25 de Abril, a minha mãe quis fazer uma divisão das tarefas domésticas e o meu pai tentava comprar-nos [risos]. Eu dizia-lhe: ‘Quer subornar os seus filhos? Isso é que é educação?’. Ele ficava furioso, conseguia comprar o meu irmão, mas não a mim. Foram uns tempos muito engraçados e dava-me um certo gozo insurgir-me contra o meu pai. Mas a questão dos direitos iguais sempre foi muito presente lá em casa, às vezes mais no discurso do que na prática [risos], porque são coisas que não se mudam num instante… Outra grande influência foi a descoberta do livro Novas Cartas Portuguesas das três Marias, escondido na gaveta das camisas do meu pai. Um livro fantástico pela maneira como é escrito, pelo que diz sobre muitas coisas do mundo. Encontrei o livro e, como estava escondido, fui lê-lo para a casa de banho… Na altura não percebi metade, mas teve um impacto fortíssimo em mim do ponto de vista dos sentimentos, pensamentos e conhecimentos e também da escrita, porque foi ali, através da plasticidade da escrita daquelas mulheres, que eu percebi que a escrita é como se fosse uma pintura, que era também uma transformação estética da realidade e que era possível fazer com que a língua tivesse cores, sons e criar através dela sensações muito distintas. 

E se calhar foi mais um contributo à sua emancipação enquanto mulher…

Sim, isso mesmo! Quando peguei naquele livro ainda pensava que os bebés vinham de Paris no bico da cegonha, ou do Sporting, como me fizeram acreditar, ou dos beijos entre um homem e uma mulher… Portanto, o livro foi um curso de educação sexual, porque também percebi como é que as coisas realmente funcionavam [risos]. Além disso, percebi a violência que os homens exercem sobre as mulheres, percebi o desejo que as mulheres têm e que, na altura, era muito silenciado. Foi um livro que me fez perceber uma coisa que para mim é muito clara desde sempre: o sistema machista é um sistema que cria infelicidade e é tão castrador para as mulheres como para os homens. Na minha geração, as raparigas – quase todas – continuaram a estudar e fizeram a licenciatura. No que toca aos rapazes do meu grupo, queriam ser o James Dean, andar de moda e ser rebeldes. Grande parte deles interromperam a licenciatura porque para eles era chique chumbar anos, tratar mal os professores e diziam às raparigas para irem para casa estudar que eles iam andar de mota. Esse esquema, fez com que as raparigas – furiosas porque não tinham a mesma liberdade – ficassem em casa a estudar e eles acabaram por não o fazer e, em muitos casos, ficaram abaixo dos estudos e possibilidades de vida dos seus próprios pais. Para mim sempre foi muito visível, quer por essa minha experiência direta, quer pelo que li nesse livro, quer pela experiência da guerra em África.

Já referiu que o seu avô foi uma grande influência para a sua paixão pela escrita e que sempre soube que queria ser escritora. Isso significa que acredita que nasceu com a missão intrínseca de contar histórias?

Não me sinto uma missionária [risos], mas sempre tive essa vontade muito forte de contar histórias. Sempre gostei muito dos contos de Andersen em particular, daquelas fantasias e dramas. Sempre achei que através das histórias se podia compreender melhor as motivações das pessoas, o mecanismo do ser humano. Lá está, começou por perguntar quem é que eu sou, eu procuro descobrir isso através do espelho das personagens que crio e que são também recriações daquilo que eu vou conhecendo do mundo. Nunca me interessou uma história que fosse só uma história, mas sim uma história que me fizesse pensar em alguma coisa que eu nunca tivesse pensado, ou de uma forma que nunca tivesse pensado. Faz-nos falta metermo-nos na pele do outro. Aquilo que nos parece absoluto vacila consoante a posição onde estamos e foi isso que sempre me fascinou nas histórias e é por isso que eu gosto de contá-las, de escrever romances.

Isso significa que jornalismo foi apenas uma forma de chegar até ao romance? Quando em 1983 se tornou profissional na redação de O Jornal, atual revista Visão, já sabia que o jornalismo seria apenas parte do caminho?

Sim, mas eu não sabia que a minha passagem pelo jornalismo seria tão temporária. Na altura, pensei que tinha de arranjar uma profissão, porque escrever não era uma forma de garantir o sustento a ninguém. Pensei em ir para Letras, para ser professora, mas como fiz o secundário no pós 25 de Abril – em que os professores começaram a exercer muito novos tendo sido muito maltratados –, não me queria submeter a isso. Entretanto apareceu o curso de Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e eu pensei que seria a melhor opção… Gostava de jornais, gostava de conhecer o mundo e com certeza que seria útil para a minha escrita, e foi. Por outro lado, é uma profissão que nos ‘tira cabelo’ e que exige muito de nós. A certa altura percebi que não tinha tempo para escrever romances, mas não fui eu que me afastei do jornalismo, foi ele que se afastou de mim. Chegava a casa estourada e era muito difícil conciliar. Foi uma grande escola! O jornalismo ensina-nos a não ter medo da página em branco, a não ter medo de não ser capaz – porque temos mesmo de ser capazes –, mas, por outro lado, ensina-nos truques específicos, pois estamos a escrever para um público específico e temos de fazer as coisas da forma mais atraente e mais simples possível. A escrita de ficção não deve ter esses limites e às vezes uma pessoa pode ficar demasiado enterrada no jornalismo e pode transportá-lo até aos romances. Ainda bem que ele se afastou de mim! [risos].

A Inês faz muitas coisas diferentes, mas, se quisesse, conseguiria viver apenas da escrita, o que é muito difícil de se conseguir em Portugal. Esse desdobramento e polivalência devem-se também ao receio de alguma vez ter de escrever a chamada ‘ficção alimentar’ se se dedicasse apenas aos romances?

A certa altura os editores começaram a propor, em vez de pagar os direitos ao fim das vendas dos livros, ter uma mensalidade. Nunca quis isso, porque observo que as pessoas que o aceitaram, quase que têm uma pistola apontada à cabeça: ‘Tens de entregar agora!’ ou ‘Tens de escrever um livro qualquer!’. Porque nos estão a pagar livros que já não existem e eu não quero essa dívida. Essas propostas também apareciam quando os livros tinham já vendido várias edições e, de repente, havia realmente muito para me pagar, porque só pagavam ao fim de x tempo e a conta já era grande… Portanto, ficava o resto na editora e eu ia recebendo, tinha uma coisa certa. Eu preferi sempre arranjar o certo numa coisa que não comprometa o meu trabalho criativo. E agora tenho a minha editora… Edito os meus próprios livros. Sou mesmo assim. Gosto de fazer várias coisas… Por exemplo, eu gosto imenso de fazer rádio, faço dois programas de rádio, um que me convidaram e outro que eu própria propus, gosto de fazer os programas de televisão, gosto de organizar festivais, fazer traduções… Sobretudo de fazer traduções, isso alimenta-me! Alimenta-me a cabeça, ajuda-me a perceber como é que outros escritores escrevem ou escreveram, as especificidades de cada um, os pilares da escrita. Consigo confrontar essas coisas com o meu trabalho e aprender. Portanto, é da minha natureza fazer sempre muitas coisas ao mesmo tempo.

E acha que ainda existe algum estigma relativamente à literatura?

Eu acho que ainda há a ideia de que esta não é uma atividade séria, uma profissão. No Fazes-me Falta, ganhei uma bolsa de criação literária e só estava a escrever o livro, muitas pessoas quando me perguntavam o que é que eu estava a fazer e eu respondia que estava a escrever um livro, ficavam admiradas, e perguntavam: ‘E que mais?’. Como se eu dissesse que estava a fazer tricô… Acho que há uma dificuldade em perceber que é uma ocupação que exige muito de nós. Depois, acho que há muita pouca voz de escritores no espaço público, eu sou apenas uma privilegiada. Nos jornais e na televisão, há imensas colunas de políticos e políticos não ativos, e não há voz de escritores, como se vê em França, por exemplo. Pensa-se que são os líricos e que o estigma está relacionado com a ideia de que os escritores vivem fora da realidade, quando a profissão do escritor é exatamente refletir sobre a realidade. Também há a ideia de que falam muito caro e de que as pessoas não os entendem, o que também é uma ideia feita.  

Qual é a magia da língua portuguesa? O que é que a nossa língua tem de tão especial?

[risos] É especial porque é complicada, porque é difícil, cheia de casos e casinhos, regras e exceções. É uma língua trabalhosa, mas a sua riqueza vem precisamente disso, da história de Portugal e do mundo. É uma língua que tocou todos os pontos do globo, entrou em muitos países e enriqueceu pelos seus contributos. E podíamos aproveitar a tecnologia para recuperar mais língua em vez de desistirmos de palavras como andamos a desistir. Temos uma língua onde conseguimos ser tudo: sintéticas, analíticas, filosóficas, irónicas. Acho que a língua não evolui mais, porque há um grande complexo em relação à história portuguesa, que é muito grande e forte: na crónica, com As Crónicas de Fernão Lopes, no Relato de Viagem (havia sempre um cronista nos barcos e a história trágico marítima é uma obra literária fantástica), e na ficção, desde a Menina e Moça do Bernardim Ribeiro, ao Almeida Garrett… Neste momento deveríamos fazer muito mais quer a nível das escolas como a nível dos meios de comunicação: dar a ver, dar a ouvir, dar a ler os grandes da literatura de expressão portuguesa.

E como vê esta migração da literatura para o digital?

À partida diria que não me importo que se leia no computador ou no telemóvel, o problema é a forma com que as pessoas o fazem e eu espero que seja uma fase. A rede social que utilizo é o Twitter e, muitas vezes, leio comentários a títulos de notícias e quando as leio, não tem nada a ver… As pessoas deixam-se levar pelos títulos enganosos. Já não há tempo para ler um bom artigo, é passar o dedo no ecrã de conteúdo para conteúdo… Espero que essa dispersão canse e se volte aos livros. Isto não acontece só em Portugal, desde o princípio do século em que estamos, até hoje, a queda de livros é brutal. Tenho esperança que esse paradigma mude, que os jovens voltem a pegar nos livros. Agora, também penso que os livros já tiveram a morte anunciada e que a literatura, como o teatro, se vai renovando.

Pode revelar-me um bocadinho dos seus processos criativos? Como é que surge um romance? No ano passado, em entrevista à Comunidade Cultura e Arte, afirmou ser uma notívaga. O silêncio da noite dá-lhe o espaço necessário para passar as ideias para o papel?

[risos] Sim! O silêncio e tranquilidade da noite. Idealmente, quando escrevo um romance, começo à meia-noite e acabo às sete da manhã: durmo de manhã, penso à tarde e escrevo à noite. A essa hora não toca o telefone, se tocar é uma tragédia, não existem interrupções, porque são perigosas, e não há barulho. Há um certo tipo de cansaço que desliga os mecanismos de censura do inconsciente. Claro que depois tenho de rever de manhã, mas a partir do momento em que ultrapasso um determinado nível de cansaço, parece que ‘o grilo’ qualquer de censura que me sussurra, também acaba por desaparecer.

Na obra Os Íntimos, de 2010, escreve enquanto homem. Como é que uma mulher se consegue aproximar dessa maneira do universo masculino? O que foi necessário? Há uma diferença de linguagem e eu contei com amigos homens que tenho. Aliás, a história do Os Íntimos, nasce precisamente por um amigo meu me ter dito que tem um ritual de encontro para ver um jogo de futebol que dá de seis em seis meses, com os amigos de infância. Nunca mais se viram, não trabalham nas mesmas áreas, mas encontram-se sempre. E eu pensei: ‘Tão engraçado, é um trabalho de entreajuda de homens e que provavelmente vai-se perseverando à medida que os homens se sentem mais ameaçados por este mundo’. Comecei a elaborar, perguntar, investigar sobre isso e percebi que é um hábito comum em muitos homens. Agora, eu acho que cada vez mais, o masculino e o feminino existem nos homens e nas mulheres de igual forma, espelhados de maneiras diferentes. Por isso, acho que a melhor maneira de escrever ou enquanto homem ou enquanto mulher, é perceber que mais do que isso, somos pessoas, somos feitos da mesma massa.

Sempre teve uma intervenção pública ativa em causas como os direitos das mulheres e os direitos LGBTI+, chegando a ser considerada, em 2005, a madrinha da Marcha do Orgulho de Lisboa. Também esteve ligada a vários partidos políticos como o PS, Bloco de Esquerda e PCP. Ouve-se muitas vezes que um jornalista não pode ser ativista, nem pode ter partido político. Qual é o seu ponto de vista relativamente a essa questão?

Como sabe, na Carteira de Jornalista, nós não podemos fazer publicidade, mas podemos ser militantes de partidos políticos. Eu sempre entendi que havia de haver um momento em que para ser militante de um partido, a pessoa tem de ter determinada lealdade e o jornalismo tem uma lealdade com a verdade. Por mais que o meu ponto de vista seja que qualquer militância política é incompatível com o jornalismo, isso não significa demitir-me de ter intervenção cívica naquilo que eu defendo, nessas causas que me pareceram importantes e intervenção em momentos que me parecem cruciais. As intervenções que eu tive próximas do Partido Socialista deram-se na altura em que estava a cair o último Governo de Sócrates e vinha o Passos Coelho. Quando olhei para o seu discurso percebi que queria tudo menos aquilo e que queria fazer de tudo para que aquilo não acontecesse. Só nessa altura fui como independente apoiar a reeleição de José Sócrates do qual já tinha sido extremamente crítica ao longo do seu percurso. Além disso, houve ainda outra situação política para Presidente da República, em que participei na candidatura de Manuel Alegre, a primeira que não tinha apoio partidário. Pelos simples facto de o Mário Soares ter dito que apoiaria a candidatura de Manuel Alegre, este ter dito em televisão que dessa maneira se candidataria e no dia seguinte Mário Soares decidiu candidatar-se. Liguei para Manuel Alegre e disse que o apoiava, para ele seguir em frente. Apoiei a Marisa Matias publicamente para a Presidência da República, adoraria ter uma mulher como presidente e, nas últimas eleições disse, por uma questão de clareza, que ia votar no PCP e votei. Penso que era bom que não se desfizesse o esquema de ter um Governo de esquerda, em que a esquerda toda participasse e houvesse um controlo. Isto para dizer que eu sou claramente uma pessoa de esquerda, mas nunca fui militante.

Além de escritora, a Inês é comentadora no programa televisivo O Último Apaga a Luz, debruçando-se sobre os mais variados temas. Como vive essa experiência? Sente que tem uma responsabilidade social por expor os seus pontos de vista?

Sinto, sinto que tenho de me informar rigorosamente, mas isso não significa que não me engane! Eu não vou ter opinião, sem ter estudado o assunto. Por exemplo, eu sigo muito mais a atualidade política porque estou a fazer o programa. É o meu dever. Agora, não me sinto minimamente condicionada. Não tenho problema nenhum em dizer bem e dizer mal, pela minha cabeça. Se tenho orgulho em alguma coisa é na minha liberdade de pensamento e de expressão. E portanto, a minha opinião é apenas a minha opinião e posso-me enganar e não ter os dados todos, mas exponho-a com autenticidade, dizendo o porquê de pensar de determinada forma e procuro não ter sectarismos. 

Como surge a Sibila Publicações, em 2017? Do que é que é feito esse espaço e quais os seus objetivos?

[risos] Eu criei a editora com o meu marido Gilson, que é designer, foi o encontro de duas vontades, porque ele gosta muito de livros e gosta muito da parte gráfica. Os meus amigos dizem-me muitas vezes que me queixo de não ter tempo para escrever, mas estou sempre a inventar coisas novas para fazer…Tenho demasiada curiosidade! Aquela ideia de ficar só a escrever e não ter mais contacto com o mundo, também não me enriquece e há muito tempo que pensava em como gostaria de abrir uma editora para publicar coisas que não tinham sido publicadas. Em 2017, pensei: «ou é agora, ou não é!». Vou-me entusiasmando, acho que devemos realmente fazer aquilo que queremos fazer, porque se não ficamos ressentidos e eu fujo disso.

Criar esse espaço próprio foi também uma forma de combater determinados problemas que possa identificar no atual sistema editorial?

Sim, sim! São muitos e às vezes são questões apenas de princípios… Uma delas tem que ver com a tradução. Há livros que eu abandonei por péssimas traduções e que depois vim a descobrir que gostava muito. Hoje em dia já se dá mais importância à tradução, mas ainda assim não o suficiente. Porque um mau tradutor, assassina um autor. Não é só passar as palavras de uma língua para a outra, até porque, por vezes, não é possível fazer isso. Portanto, por um lado, queremos valorizar a tradução, por outro, e o objetivo inicial da editora, é publicar mulheres que estejam desaparecidas, como é o caso da Ana de Castro Osório, da Ana Plácido: escritoras portuguesas que até têm nomes de ruas, mas ninguém tem os seus livros para ler. Queremos também descobrir novas escritoras que não tenham sido editadas e que não têm as mesmas oportunidades que os homens. Eu tenho um agente literário que é americano e que diz que quando tem dois autores, um homem e uma mulher tendo de optar por um deles, agora opta pela mulher porque é a ação cívica dele, o seu ativismo, porque ao longo do tempo reparou que as mulheres são menos traduzidas do que os homens. As traduções vêm dos prémios e os homens recebem muito mais, começando pelo Prémio Nobel… Têm também muito mais divulgação crítica nos jornais e, portanto, os agentes em geral preferem os homens. A nossa ideia é dar voz a mulheres e temos conseguido provar que há quem esteja interessado nisso.

Como viveu ou está a viver esta situação pandémica? Muitos artistas se queixaram de bloqueios criativos nos dois períodos de confinamento…

Bloqueio criativo não, mas, sim, uma certa ansiedade e um bloqueio na minha tese [risos]. Há uns anos que estou a tentar escrever a minha tese de Doutoramento e queria muito ter aproveitado esse tempo para escrevê-la, não consegui [risos]. Consegui ler muito, vi muito cinema com a minha filha e não fiquei em pânico como muita gente. Tenho tantas solicitações de trabalhos que neste tempo consegui aproveitar para estar em casa.