Tive a sorte (combinada com um poucochinho de talento, admita-se) de ser o autor, com o gráfico Francisco Alves, de uma das melhores capas de sempre da imprensa portuguesa.
Ainda por cima, a capa de uma edição proibida por ordem judicial (uma providência cautelar), que a direção do jornal e a administração, presidida por Ana Bruno, tiveram a coragem de desrespeitar.
A capa era totalmente dominada pelo rosto de perfil de José Sócrates, impresso a negro, sobre um fundo vermelho; e o título era simplesmente: O Polvo.
A jornalista Ana Paula Azevedo, uma excelente jornalista de investigação, que era editora do jornal, veio dizer-me em privado que não podíamos fazer aquele título, pois era o nome de uma série televisiva sobre a Mafia, e não havia elementos suficientes para considerar Sócrates um ‘mafioso’.
Mas eu intuía que o título era perfeitamente adequado, e os elementos de que dispunha apontavam nesse sentido.
O SOL foi para as bancas no dia 11 de fevereiro de 2010 e a edição, de 130 mil exemplares, esgotou em duas horas.
Nessa altura nós já mantínhamos com o então primeiro-ministro uma relação muitíssimo difícil.
O SOL fora o primeiro jornal a denunciar os factos que haviam dado origem ao processo Face Oculta, como já fora o primeiro a noticiar o caso Freeport.
Nós éramos, portanto, homens a abater.
As tentativas para fechar o jornal tinham-se sucedido de várias maneiras e envolvendo diversos protagonistas.
Vivemos momentos de angústia e desespero.
O Presidente da República, Cavaco Silva – mais de dez anos depois já o poderei revelar –, chamou-me a Belém para se informar sobre o que estava a suceder e à saída disse-me, enquanto me apertava demoradamente a mão: «Não desista!».
Não desistimos.
Mas se não fosse um grupo de empresários angolanos terem decidido apoiar-nos, teríamos fechado as portas.
Eu não tinha dúvidas de que Sócrates era o centro (ou o executor) de um plano cujos tentáculos chegavam a todas as áreas.
Ele dominava o Governo, dominava o Parlamento, através do PS, dominava o poder judicial, através do procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, dominava parte da comunicação social (tinha acabado de fazer uma tentativa de compra da TVI, a estação mais ‘rebelde’, através da PT e de Rui Pedro Soares), dominava naturalmente as grandes empresas públicas, à cabeça das quais a dita PT, dominava boa parte da banca.
Nesta, além do controlo sobre a Caixa Geral de Depósitos, José Sócrates tinha uma relação de cumplicidade com o BES, através de Ricardo Salgado, mas faltava-lhe uma peça essencial: o BCP, o maior banco privado português.
Um tempo antes, o empresário Joe Berardo começara a fazer repetidos ataques àquele banco, pronunciando acusações como: «Se um criminoso quer assaltar um banco, abre uma conta lá primeiro; depois, é sigilo bancário».
Ou ainda: «A pouca vergonha não pode continuar impune no BCP, e alguns administradores têm de ser responsabilizados».
Estes ataques eram incompreensíveis.
Berardo detinha mais de 250 milhões de ações do BCP, correspondentes a 7 %, e se o banco tivesse problemas ele seria um dos grandes prejudicados.
E o facto é que, pouco depois, as ações do BCP caíam a pique, o banco afundava-se e Berardo perdia centenas de milhões.
Com o BCP de pantanas, José Sócrates propõe aos aflitos acionistas uma ‘solução’ insólita: colocar na administração daquele banco os seus homens de mão Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, então administradores da CGD.
O ato seria impensável em qualquer país civilizado: os administradores principais do banco público transferirem-se de armas e bagagens para um banco privado com o apoio do primeiro-ministro. Mas aqui não.
E os atarantados acionistas (um dos quais era Joe Berardo) deram a bênção à operação: assim como assim, era preferível aceitar os homens de Sócrates do que ver o banco falir.
Na época, esta história ficou um tanto escondida.
Mas esta semana o Ministério Público veio destapar um pouco a tampa sobre mais um caso lamentável em que Portugal perdeu uns milhares de milhões.
Ao prender Joe Berardo, ao constituir arguido Carlos Santos Ferreira, os acontecimentos relatados começam a fazer mais sentido.
Para deitar a mão ao BCP, Sócrates pôs o seu peão Berardo a fazer uma guerra no banco: primeiro, comprou milhões de ações com um empréstimo da CGD autorizado por Carlos Santos Ferreira e Armando Vara; depois começou a disparar sobre a administração.
O BCP caiu a pique, pediu ajuda ao primeiro-ministro, e este acedeu desde que à frente do banco ficassem… os mesmos Santos Ferreira e Vara!
E deste modo se consumou a tomada do poder do BCP por José Sócrates.
Simples, muito simples – mas só possível num país de cócoras.
Adiante-se que uma das primeiras decisões de Armando Vara como administrador do BCP foi rasgar um patrocínio ao SOL (do qual o banco era acionista), já concedido…
Se o caso Marquês, que envolve sobretudo a PT, será o primeiro julgamento de José Sócrates, este caso envolvendo o BCP é o segundo.
As próximas semanas trarão certamente mais pormenores sobre esta história.
No essencial, porém, é a que fica contada.
Devo hoje confessar que, quando fiz aquela capa com o título O Polvo, não sabia ainda até que ponto ela era adequada.