Até sempre Ajuda!

Com a pandemia, os utentes procuraram mais o centro de saúde, como seria de esperar, sufocando por vezes o serviço e impossibilitando-o de dar a resposta desejável, apesar de todos os esforços efetuados nesse sentido. Oxalá este desconfinamento traga de volta a normalidade perdida dos tempos que já lá vão.

Chegou finalmente o dia da minha passagem à aposentação. No passado dia 30 cessei oficialmente funções na unidade de saúde onde prestava serviço desde o início de 1999: a USF da Ajuda.

Enquanto lá estive, omiti propositadamente nos meus artigos o nome do centro de saúde; mas, agora que me retirei, quero publicamente cumprimentar todos aqueles com quem trabalhei, e agradecer de forma especial aos utentes que depositaram em mim a sua confiança ao longo de todos estes anos.

No centro, aos colegas de trabalho, à enfermagem, aos administrativos e pessoal auxiliar, na pessoa da sua diretora, Dr.ª Susana Correia, fica o abraço sentido e reconhecido de quem com eles colaborou e partilhou diariamente as alegrias e as tristezas de uma caminhada em comum.

Aos habitantes deste simpático bairro histórico, que me recebeu de braços abertos quando me apresentei para os servir, deixo também uma saudação amiga, pedindo ao presidente Jorge Marques, há anos à frente da Junta de Freguesia, que, em meu nome, lhes transmita de viva voz como me foi grato acompanhá-los e ter vivido com eles momentos de glória que me marcaram e nunca irei esquecer.        

O Bairro da Ajuda é um dos bairros típicos de Lisboa, conhecido pelo seu Palácio, um autêntico livro de História, agora em fase de reestruturação; a famosa Torre do Galo; a Igreja da Memória, onde está sepultado o Marquês de Pombal; o quartel da GNR, a tropa de elite que bem conhecemos e respeitamos; o Pátio Alfacinha, espaço muito conhecido na cidade, utilizado para festas e programas de TV.

A população é, de um modo geral, envelhecida, pois os jovens que começam a constituir família são ‘obrigados’ a procurar habitação em locais mais distantes, dada a dificuldade de alojamento na zona por motivos económicos, totalmente fora das suas possibilidades. O problema, aliás, é comum a outros bairros da cidade, onde encontramos inevitavelmente os mesmos obstáculos, impossíveis de ultrapassar, com que as autarquias se deparam sem solução à vista.

Com a pandemia, os utentes procuraram mais o centro de saúde, como seria de esperar, sufocando por vezes o serviço e impossibilitando-o de dar a resposta desejável, apesar de todos os esforços efetuados nesse sentido. Oxalá este desconfinamento traga de volta a normalidade perdida dos tempos que já lá vão.

Perguntaram-me, há dias, qual a melhor recordação que levava do serviço e o que mais me entristeceu neste meu percurso. A resposta foi quase imediata: a melhor recordação foi ter contribuído para que a Leonor nascesse, a tal história já por mim descrita neste espaço, quando uma jovem confusa e desesperada por uma gravidez não planeada me procurou pedindo ajuda, pois já se preparava para seguir outro caminho. Ainda hoje recordo o momento de emoção que vivi muito tempo depois, num fim de tarde, quando a mesma jovem voltou a procurar-me para me dizer: «Lembra-se da nossa conversa de há tempos? Apresento-lhe a Leonor! Aqui tem mais uma utente para acrescentar à sua lista».

O que mais mágoa me causou foi ter saído deixando o SNS tal como o encontrei. A tão falada remodelação não passou de uma miragem e as principais reformas continuam por fazer. É inacreditável como ainda há portugueses sem médico de família – não obstante pouco se conseguir fazer quando a oferta é inferior à procura.

Estabeleci com os meus doentes uma relação forte, saudável e, acima de tudo, de confiança.

 Esforcei-me por fazer o meu melhor, mas interrogo-me se o fiz bem e se ficaram, ou não, coisas por fazer. Tudo é discutível. Agora há que dar um voto de confiança aos mais novos e acreditar nas suas potencialidades. Eles merecem. A vida vai continuar.

 Em jeito de despedida, partilho uma recordação. A minha ‘marca’, como alguém me disse. Sabendo do meu gosto pela poesia, vários utentes me perguntavam se eu não escrevia um poema sobre a Ajuda. «Talvez um dia, quem sabe? Há de chegar o momento», respondia eu sem dar muita importância ao assunto. Esse momento apareceu, naturalmente, quando menos eu esperava. Tinha ido ver um doente à Calçada do Galvão. E assim nasceu A Calçada do Galvão, que quero dedicar aos habitantes do bairro que levo no coração.

A Calçada do Galvão

Na Calçada do Galvão/Olhando sobre a Memória/ Pedaços do coração/ Ficaram ali pr’á História/Levei nos braços a esperança/A tanta gente na dor/A outros a confiança/Numa palavra d’amor/Naquela velha calçada/Alguns amigos eu fiz/Hoje já noutra morada/Foi Deus que assim o quis/Quando volto àquele lugar/ O Tejo em pano de fundo/Dou comigo a meditar…/Tudo passa neste mundo/Que belas recordações/Guardo daquela rua/Muitas são as emoções/ Mas a vida continua…

Até sempre, Ajuda!