Crescem os apelos para um corte nos fundos europeus à Hungria

Livros LGBT+ tornaram-se um alvo na Hungria, e alguns lembram que este país é muito dependente de dinheiro europeu. Incluindo amigos e familiares de Orbán.

Crescem os apelos para um corte nos fundos europeus à Hungria

Ouviram-se duras críticas por toda a Europa, fizeram-se petições e abanaram-se bandeiras contra a nova legislação anti-LGBT+ húngara. Ainda assim, o Executivo de Viktor Orbán, por mais isolado que tenha ficado entre os seus pares, não sentiu grandes consequências pelas suas ações. Mas irá sentir, prometeu a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, garantindo perante o Parlamento Europeu que “se a Hungria não retificar esta situação, a comissão irá usar os seus poderes disponíveis como guardiã dos tratados”, esta quarta-feira.

Orbán recusou imediatamente em aceder às exigências – no dia seguinte uma livraria hungara era multada por vender livros para crianças com histórias sobre pais do mesmo sexo, à boleia da nova lei, que equaciona a homossexualidade com a pedofilia.

O que é que o ultimato de Leyen quer dizer, concretamente, só o tempo dirá. No entanto, no Parlamento Europeu, cada vez mais vozes exigem o corte dos fundos europeus destinados a Budapeste. Não só pela legislação anti-LGBT+, mas também por irregularidades no uso de fundos europeus pela Hungria. Trata-se de um dos países membros mais dependentes economicamente da UE, da qual recebeu 6,3 mil milhões de euros em 2018, o equivalente a quase 4% do seu PIB – estima-se que 80% do investimento público húngaro seja com fundos de coesão europeus. E este ano o Executivo de Orbán ainda pediu uns 7,2 mil milhões de euros extra para ajudar a enfrentar a pandemia. 

Ninguém tem dúvidas que o fecho dessa torneira certamente faria Orbán pensar duas vezes. Não só pelo impacto que a quebra económica poderia ter na sua popularidade, mas porque seria algo sentido no seu circulo mais intimo. Há muito que se sabe que amigos e familiares de Orbán têm enriquecido graças a financiamento europeu, ganhando contratos públicos para construção de estradas, saneamento ou distribuição elétrica, beneficiando – de forma abusiva, são acusados – de fundos agrícolas da UE. 

Importa lembrar que o Fidesz, partido de Orbán, tem como base de apoio “oligarcas” – o termo é mais comummente aplicado na Rússia, que sofreu um processo económico semelhante ao húngaro – que beneficiaram das privatizações em massa no rescaldo da Guerra Fria, após a Hungria deixar de ser um satélite soviético. Quando Orbán chegou ao poder, em 2010, subitamente amigos e familiares viram mais um pico de riqueza, desta vez com dinheiro vindo da UE. 

Há casos de abuso desses fundos mais claros do que outros. Por exemplo, quando uma empresa de István Tiborcz, marido da filha mais velha de Orbán, Ráhel, ganhou um contrato público, financiado pela UE, entre 2011 e 2015, para iluminar as ruas da Hungria – as lâmpadas custaram mais 56% do que o habitual, avançou o site húngaro Direkt36, tendo as autoridades anticorrupção europeias exigido a devolução de 40 milhões de euros.

Ou quando se construiu um grande estádio de futebol, uma das maiores paixões de Orbán, na sua aldeia natal de Felcsut, capaz de receber mais do dobro dos habitantes da localidade.

O estádio, coberto de imagens de folclore húngaro, tão queridas a conservadores como Orbán, é servido por uma estação de comboios que custou dois milhões de euros à UE, e está quase sempre vazia. Ambos os projetos foram construídos por Lorinc Mészáros, antigo colega de escola de Orbán, que, de um momento para o outro, saltou para quinto lugar na lista de pessoas mais ricas do país, após ganhar vários contratos públicos, segundo o Financial Times – já o site húngaro Átlátszó estima que 83% das receitas de Mészáros venham de fundos europeus.

A dúvida é se, mesmo que sob ameaça de ver o dinheiro europeu sumir, Orbán não acabaria tentado a manter o seu rumo. As eleições legislativas da Hungria estão marcadas para o próximo ano, a Oposição Unida, que junta os adversários de Orbán, está taco a taco com o Fidesz, com 47% das intenções de voto, segundo o Politico, e menos de metade dos húngaros consideram sequer que homossexuais devam ser aceites na sociedade, mostra uma sondagem de 2019 do Pew Research Center. 

 

Europa dividida Usar a dependência económica húngara para impedir abusos contra os direitos de pessoas LGBT+ poderia ser algo linear, mas não é. Boa parte das decisões europeias implicam unanimidade, e a oposição da Hungria e da sua aliada Polónia poderia tornar a UE praticamente ingovernável, temem alguns – a própria Von der Leyen foi eleita presidente da Comissão Europeia como candidata de compromisso com estes países, surpreendendo todos e passando à frente dos favoritos na corrida.

Além disso, há receios de que eventuais sanções causem mais impacto entre a população húngara que entre os oligarcas, à semelhança das sanções a tantos outros países autoritários.

“O que queremos é que o Estado de direito funcione na Hungria, não é porque tenhamos um fetiche por sanções”, disse o eurodeputado Daniel Freund, dos verdes alemães, citado pelo Guardian. Como tal, o corte de fundos europeus não deveria ser total, “não deveriam ser os cidadãos húngaros comuns a sofrer com isto, deveria punir o Governo, por isso a comissão teria de identificar as linhas orçamentais certas”, notou Freund. 

Ainda antes da lei anti-LGBT+ húngara ser aprovada, o eurodeputado já tinha encomendado um relatório a três juristas, que consideraram que a UE tinha o poder de cortar fundos dirigidos à Hungria, para proteger os contribuintes húngaros de mais corrupção. Se a comissão de Von der Leyen quererá usar esse poder, é outra questão. 

Entretanto, na Hungria, livros sobre temas LGBT+ viraram alvos, tendo a cadeia de livrarias Líra Könyv sido multada em 250 mil forintes, equivalente a 700 euros, por vender o livro infantil Micsoda család!, a compilação e tradução em húngaro de dois livros do americano Lawrence Schimel, que inclui histórias sobre o quotidiano de um rapaz com duas mães, e de uma rapariga com dois pais. As autoridades consideraram que o livro não estava rotulado como “conteúdo que se desvia da norma”, noticiou a Reuters.