O quadrado imaginário de Volante

Na frente dos centrais, o lugar era dele. Os treinadores começaram a ensinar: ‘Vê? Joga como o Volante!’ A gente cá chama-lhe trinco.

A maneira como fazia de conta que ia para lá e, de repente, saía pelo lado contrário era desconcertante. Mas não abusava. Na maior parte do tempo ficava sobriamente vigiando o adversário mais próximo e pronto para o deitar abaixo se preciso fosse. Volta e meia dava um berro, em italiano como o pai, Giuseppe Volante, ferreiro ferroviário, uma profissão que mete mais erres pelo meio do que o falar de um pescador de Setúbal. Giuseppe tinha sete filhos e a certeza de que o mais novo era o mais esperto de todos. Mas José Peppe Norberto Volante queria mesmo era jogar futebol na equipa do Lanús, clube que nascera num dos subúrbios de Buenos Aires e cujo dono fora um francês misturado de basco e grego, Anacarsis Lanús. O Clube Atlético Lanús nasceu aí mesmo, fruto da fusão do Lanús Athletic Club e do Lanús United. José jogou lá. Depois foi treinador. Finalmente presidente. Era mesmo um tipo esperto.

Já Carlos, o filho número quatro de Giuseppe, andava de um clube para o outro. Não era fixado no Lanús como o irmão. Só jogou lá um ano. Chegou para ficar para sempre como um dos mais importantes futebolistas que por lá passaram. É preciso dizer que os outros clubes de Lanús também tinham todos Lanús no nome, não eram só o Athletic e o United. Havia o Argentino de Lanús e o Lanús Central. Carlos andou por todos. Mas quando se tornou jogador a sério, profissional de papel carimbado e assinatura reconhecida, foi no Atlético ao qual os adeptos chamam carinhosamente de Granate por causa da cor grená das camisolas.

Inquieto, Carlos seguiu para o Adrogué. Recrutado para o serviço militar saiu da tropa e passou a ser galucho do San Martín. Ninguém dava muito por ele. Carlos Martín Volante, nascido no dia 11 de novembro de 1910, volta e meia dava aqueles gritos em italiano, recompondo os meios-campos em que jogava, mas era mais de ficar do que de ir e o povo gostava mesmo era aquele jeito de não ir e ir mesmo. Tornou-se um jogador fixo. Desenhava mentalmente um quadrado em frente dos centrais e esse quadrado era dele._Mas mesmo dele, como se lhe pertencesse. Quem entrasse no seu quadrado não ouvia apenas os urros em italiano. Às vezes tombava no chão como um pinheiro cortado pela raiz.

Em 1928, Carlos estava no Platense, sempre sem saber para onde iria a seguir. Quando calhou jogarem com o Lanús, combinou com o irmão, José, que estava no primeiro ano da carreira, que não jogaria. Não ficava bem irmão contra irmão. Então foi a vez de a mãe Volante dar um berro: «Jogam os dois!». E que dessem tudo pela vitória que era assim que os tinha ensinado. O jogo não correu bem a Carlos. Ficou lá no seu quadrado e viu José empurrar o Lanús para um triunfo por 5-2. O público, esse, gritava contra Carlos, acusando-o de traidor. O público dos dois clubes: do Lanús por ter saído de lá; do Platense por achar que estava a fazer um frete aos da sua terra. Encolheu os ombros. Uns dias depois era chamado à seleção argentina pela primeira vez.

Nesse mesmo verão, o Gimnasia de La Plata fez uma excursão pela Europa. Um sucesso. Ganhou ao Real Madrid e ao Barcelona e foi jogar a Nápoles onde o médio-centro José María Minella encheu o campo. Os italianos quiseram ficar com ele, mas de pouco valeu a insistência. Acabaram por perguntar-lhe que jogador argentino se parecia mais com ele no estilo._Minella não teve dúvidas e indicou Carlos Volante. O convite chegou e a gritaria também. A mãe tinha os filhos todos presos pelos fundilhos e proibiu Carlos de assinar contrato. Então ele propôs: «Vou pedir 150 mil Liras por dois anos e mais quatro mil por mês. Ninguém paga tanto. Mas se pagarem, vou». Pagaram. E viagem e casa para ele e para o pai. Continuou inquieto: Nápoles, Livorno, Torino… Casou com uma filha de família rica de Turim, Maria Luísa, mas, quando soube que Mussolini tinha dado ordens para que todos os estrangeiros naturalizados, os ‘oriundi’, fossem chamados para o serviço militar, decidiu que já tinha tido tropa que chegasse e passou a fronteira para França. Tomou conta do seu quadrado imaginário com a perseverança de sempre, no Rennes, no Lille e no CA Paris. Durante o Mundial de 1938, ofereceu-se para ser massagista da seleção brasileira. No regresso foi junto e assinou pelo Flamengo. Mas para jogar.

Em 1939, o Flamengo tinha uma equipa cheia de argentinos: Arturo Naón, Agustín Valido, Alfredo González, Raimundo Orsi (que foi campeão do mundo pela Itália) e Carlos Volante. Carlos finalmente aquietou: ficou no clube até 1943.

Manteve-se um defensor feroz do seu quadrado. Naquela zona do campo só havia lugar para ele. Depois, quando o adversário vinha ao seu encontro, ou lhe roubava a bola e saía naquela simples complexidade do vai não vai e vai mesmo, ou derrubava o mamífero logo ali, sem piedade. Os treinadores começaram a ensinar os seus jogadores: «Tá vendo o Volante? Joga como ele. Joga como Volante». O nome ficou. A gente por cá chama-lhe trinco._Mas, no Brasil, quem está na frente dos centrais é sempre o Volante.

afonso.melo@newsplex.pt