Constituição ou letra morta?

Podia lá Marcelo ficar como derrotado por António Costa… Como ele próprio fez questão de frisar: se sofreu uma derrota jurídica, teve uma vitória política, porque, para ele, mais importantes do que a Constituição, o Direito, a Lei, são os direitos sociais.

O comentador Marcelo Rebelo de Sousa não perdeu tempo, pegou no telefone e ligou para uma televisão (no caso a SIC Notícias) a proclamar a derrota jurídica do constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa para reclamar a vitória política do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa no caso da declaração de inconstitucionalidade da lei da Assembleia da República da iniciativa do PSD e aprovada em chamada ‘coligação negativa’ pela Oposição com os votos contra do partido do Governo sobre medidas de proteção social em plena pandemia.

Parece inverosímil, mas é verdade. Na quarta-feira à noite, mal foi anunciada a decisão do Tribunal Constitucional que deu razão a três das cinco dúvidas de constitucionalidade suscitadas pelo Governo em relação à dita lei obviamente violadora da Lei Travão que proíbe a AR de impor ao Governo leis que determinem o aumento da despesa ou a diminuição da receita previstos na lei do Orçamento do Estado, Marcelo pegou no telefone e ligou para aquele canal de televisão, que estava a dar a reação do Governo pela voz do secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes.

O telefonema presidencial – tal como já acontecera noutras ocasiões igualmente inusitadas – apanhou de surpresa o pivô de serviço, que não disfarçou a satisfação com que recebeu aquela chamada. Afinal, e como podia ler-se em rodapé, tinha um ‘furo jornalístico’: «Marcelo R. de Sousa reage em direto na SIC Notícias».

Marcelo Rebelo de Sousa, comentador político e reputado professor de Direito, constitucionalista e administrativista, é Presidente da República.

Mas não resistiu. Não resiste. É impulsivo e mais forte do que ele.

Podia lá Marcelo ficar como derrotado por António Costa… Como ele próprio fez questão de frisar: se sofreu uma derrota jurídica, teve uma vitória política, porque, para ele, mais importantes do que a Constituição, o Direito, a Lei, são os direitos sociais.

Porque, diz o Presidente-constitucionalista-comentador, «o Direito deve estar ao serviço da Política e não a Política ao serviço do Direito».

Problema: Marcelo Rebelo de Sousa não pode mandar às malvas a Constituição e o juramento solene como Presidente da República, também inscrito na Constituição da República: «Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa».

O Presidente da República sente-se muito feliz por ter garantido aos portugueses uma proteção que doutra maneira não teriam, se não tivesse promulgado», concluiu Marcelo Rebelo de Sousa.

Ou seja, para o 5.º Presidente da República eleito em democracia, a Constituição não deve nem pode servir de travão quando outros valores políticos se levantam.

E não deixa de ser curioso que seja precisamente um douto constitucionalista a pensar assim.

Acontece que, desta vez, o que estava em causa era a Lei Travão – que impede o Parlamento de agravar as despesas ou reduzir as receitas inscritas na Lei do Orçamento do Estado.

Mas já no ano passado se dera o caso de a Assembleia da República e o Presidente da República terem fechado os olhos à igualmente clara violação da Constituição com a aprovação e promulgação de uma lei violadora de compromisso assumido contratualmente pelo Estado (no caso das transferências do Fundo de Resolução para o Novo Banco, por força do contrato assinado entre o vendedor Estado e a compradora Lone Star).

Mas há muito pior e mais grave: a discricionária limitação de direitos fundamentais e a adoção de medidas ostensivamente restritivas da liberdade individual dos cidadãos a pretexto da situação pandémica.

Não há lei de proteção civil – a que o Governo se socorre – que possa justificar tamanho afrontamento e negação da Constituição da República.

E nada nem ninguém parece incomodar-se minimamente com isso. Nem a Oposição, queda e muda, nem o Presidente da República, que ameaça mas não faz e contemporiza com o facto de o Executivo ignorar, quando não satirizar, seus acanhados avisos.

Pois é, já que estamos em tempo de revisão constitucional, face a este cenário, aproveite-se para, de uma vez por todas, limpar a Lei Fundamental de todas as vacuidades, inutilidades e contradições.

Aproveite-se para a adaptar aos novos tempos e desafios que o país enfrenta.

E para que deixe de ser um instrumento que só serve para uma enviesada visão da sociedade, da economia e da Política.

Porque, ao contrário do que diz o Presidente da República, colocar o Direito ao serviço da Política é deixar de dar aos cidadãos, às pessoas singulares e coletivas a certeza de que podem, no mínimo, contar com a garantia do que está na Lei e, maxime, na Constituição.

Quando assim deixa de ser, é da democracia que se faz letra morta e do estado de Direito tábua rasa.